Wednesday, January 03, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - sexto capítulo


Nono dia (31/12/00 – domingo) – La Barra (Punta del Este) a Piriápolis

Pedalando entre enormes mansões e já divisando os grandes edifícios do centro, entrávamos em Punta del Este, marco importante em nosso itinerário rumo ao Chile. Era o nono dia de pedalada, um domingo ensolarado. Muitas pessoas já disputavam espaço nas praias mais movimentadas de Punta, enquanto outras passeavam tranqüilamente pelo calçadão. Um dos pontos turísticos mais conhecidos dessa famosa praia é a escultura em formato de mão que parece emergir da areia, conhecida como Los Dedos, onde paramos para algumas fotografias. Depois disso, seguimos diretamente ao coração da cidade, a Avenida Gorlero.
Seguimos a pé, empurrando nossas bicicletas pela calçada e no centro da cidade fizemos uma breve parada para lanche. Estacionado bem à nossa frente um estranho automóvel chamava a atenção por ser completamente diferente dos conversíveis luxuosos que já havíamos visto: era uma Romiseta, veículo menor do que a minha bicicleta.
Percorrendo a parte central da península, chegamos às proximidades da área portuária e desviamos à esquerda para conhecer o Iate Clube de Punta del Este. A primeira surpresa positiva foi constatar que poderíamos entrar até a marina (onde estavam atracados os veleiros) e que não precisaríamos nos identificar, pedir autorização ou pagar qualquer espécie de taxa – ou seja, era uma marina realmente pública, o que não é comum em nosso país. Em Porto Alegre, por exemplo, é preciso ser convidado por algum sócio para poder permanecer no clube náutico. A surpresa seguinte foi avistar os lobos marinhos disputando com as gaivotas os restos de peixes que os transeuntes recolhiam com os pescadores e lhes ofereciam. Pudemos nos aproximar bem desses imensos animais e ouvir sua respiração forte quando colocavam a cabeça para fora da água, espreitando-nos em busca de alimento.
Depois de ver gaivotas, lobos marinhos e barcos para todos os gostos e bolsos, seguimos pela avenida beira-mar (Rambla General Artigas) em direção à ponta da península. Pude fotografar o farol de Punta del Este somente por fora, pois as visitas não eram permitidas pela Marinha. Pedalamos pelo litoral, novamente pela escultura em formato de mão e, agora em sentido transversal, pelo centro da cidade, rumo à Ruta 10, nossa rota de saída em busca de novas paisagens. Passamos pelo famoso Casino Conrad e fomos nos distanciando cada vez mais do centro. A partir dali, Punta del Este começaria a fazer parte de nossa memória.
Em nosso caminho para Piriápolis encontramos Punta Ballena - pronuncia-se “Punta Bajena” e, como podemos concluir, traduz-se por Ponta Baleia ou Ponta das Baleias. Depois de uma longa subida, deixamos a Ruta 10 e seguimos à esquerda por uma grande ponta de pedras que avança mar adentro. Um local muito bonito, cercado pelas águas azuis do oceano, com vista para Punta del Este (obviamente, para o Leste), Baía de Portezuelo e Piriápolis (olhando para o Oeste). De Punta Ballena podíamos avistar o caminho que ainda pretendíamos percorrer naquele dia, o último do ano 2000.
Retornando para a Ruta 10 passamos por um cartão postal chamado Casapueblo, residência de um eclético artista plástico e poeta uruguaio chamado Carlos Paez Villaró. A construção é totalmente branca e inspirada nos tradicionais prédios do Mediterrâneo, com formas arredondadas; em seu interior, um museu, o ateliê do artista, um bar/restaurante e, claro, uma loja de artesanato. Para entrar precisaríamos fazer uma visita guiada e pagar um ingresso “não muito simbólico” de cinco dólares por pessoa, então resolvemos colocar o pé na estrada com destino a Piriápolis.
O dia estava bastante quente e aproveitamos para tomar iogurte. Como já havíamos descoberto, tanto os produtos lácteos (de modo geral) como os pães uruguaios eram extremamente deliciosos, completamente diferentes do “pão-de-vento” cheio de bromato que encontramos no Brasil. Os iogurtes e os sorvetes eram cremosos, o leite mais consistente, os queijos, então... uma delícia! Mas não estávamos lá somente para aproveitar a gastronomia, felizmente. Queríamos atravessar o continente com nossas próprias pernas e vislumbrar as águas ainda desconhecidas do Oceano Pacífico, descortinando novas paisagens e conhecendo um pouco das novas culturas que encontrávamos em diferentes regiões. Subimos nas bicicletas carregadas e tomamos a direção de Piriápolis.
O sol forte nos castigou bastante e enfrentamos várias subidas. Além desses dois fatores adversos, comecei a sentir um desagradável desconforto estomacal. Quando planejamos uma viagem dificilmente podemos prever que adversidades encontraremos pelo caminho; a solução é, portanto, enfrentá-las. O último dia do ano não era exatamente um bom dia para esse tipo de problema, mas não era algo sobre o qual eu tinha qualquer controle. Algum alimento ou provavelmente água seria a causa, mas isso nunca descobriríamos.
Piriápolis é uma das cidades balneárias mais populares e tradicionais, situada ao pé de vários cerros, no km 98 da Ruta 10. Ainda no acesso à praia encontramos o Camping El Toro, onde paramos para decidir se seguiríamos até o Albergue da Juventude ou se ficaríamos acampados. Fui voto vencido e acabamos seguindo para o camping, passando antes pela Fuente de Venus. Escolhemos um local e armamos o acampamento auxiliados por um casal de vizinhos uruguaios. Na hora de montar minha barraca um grande rasgo destruiu parcialmente uma bolsa dos pólos de sustentação. O vizinho veio em nosso auxílio com linha e agulha, costurou a parte rasgada e colou com fita adesiva (silver tape), dando várias dicas sobre o que havia sido seu ofício. Com acampamento montado, seguimos a pé pela cidade até a praia, parando na Rambla de los Argentinos. Muitas pessoas afugentavam o calor tomando banho e resolvemos seguir o exemplo. A água, transparente, não chegava a ser completamente salgada, o que se explica pela foz do Rio da Prata. Estávamos na fronteira entre rio e mar, em um imenso estuário em forma de funil invertido que naquele local tinha mais de cem quilômetros de largura. Seguindo para Colonia del Sacramento essa distância seria reduzida a quarenta quilômetros, que pretendíamos atravessar de barco.
Após o banho a fome se fez sentir e comemos pastéis de frutos do mar em uma banca de pescadores. Visitamos também a marina, onde um imenso veleiro – Don Juan, de Londres – estava atracado. O dia já estava terminando e eu pretendia ver o pôr-do-sol de algum local interessante, então resolvi subir o Cerro San Antonio. Egon e Jacson preferiram seguir direto para um mercado e voltar ao camping, pois imaginavam que já estivesse tarde demais para conseguir subir a estrada que dava voltas morro acima. Comecei subindo pelo asfalto e, encontrando uma pequena trilha que seguia junto aos postes de sustentação da aerosilla, uma espécie de teleférico, consegui atalhar grande parte do caminho e chegar a tempo. No topo desse cerro está situada a Templeta de San Antonio (uma capela com a respectiva imagem do santo), um restaurante, uma antena e lojas de recuerdos, claro. Fiquei bastante tempo apreciando a belíssima vista do lugar e o pôr-do-sol sobre o Rio da Prata. Pouco a pouco as luzes da cidade foram se acendendo e a baía refletia o colorido dos primeiros fogos de Ano Novo. Ao longe era possível imaginar Montevideo pelo clarão de suas luzes e, para o lado oposto, Punta del Este. Estava ficando tarde e eu precisava voltar ao camping, então fiz mais algumas fotografias e retornei.
A passagem de ano não foi muito agradável, pois o mal-estar no estômago havia piorado. Senti frio por causa da febre e tomei um bom banho quente. O casal de vizinhos uruguaios, muito prestativo, preparou um chá e deu boas recomendações que auxiliaram no tratamento, além de sugestões sobre o roteiro e acesso a Montevideo, onde pretendíamos chegar no dia seguinte. Apesar de não ter apenas bons momentos, numa viagem desse tipo podemos descobrir que ainda existem pessoas com disposição para solidarizar-se e ajudar os demais. Obrigado, amigos uruguaios!
Nesse último dia do ano 2000, os dados registrados pelo ciclocomputador foram:

Distância pedalada no dia: 63,05 km.
Distância total acumulada: 1018,45 km.
Tempo pedalado: 3 h 49 min 47 s.
Velocidade média: 16,5 km/h.
Velocidade máxima: 61 km/h.

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