Camping Municipal de Valle María, Argentina.
Já fazia tempo que eu tinha vontade de fazer um caiaque e inclusive já estava com compensado naval comprado para confeccionar um caiaque stitch and glue baseado no livro "The New Kayak Shop" de Chris Kulczycki. Outro dia me deparei com a possibilidade de participação no Primer Simposio de Qajaq Artico que seria realizado na Argentina, em Valle Maria.
Entrei em contato com o idealizador e organizador do evento - casualmente um brasileiro! - chamado Rony Maier e iniciei conversações para verificar a possibilidade de participação. O que mais me chamava a atenção era justamente uma oficina para confecção de caiaques através de técnica tradicional, que seria ministrada pelo japonês Eiichi Ito. Além disso haveria uma oficina para confecção de remo groenlandês, ministrada por Don Beale (Estados Unidos), e oficinas com Dubside, um verdadeiro conhecedor das técnicas tradicionais de rolamento. Estariam por lá também Joanne Barta (Estados Unidos), James Manke (Canadá) e Paul Diener (brasileiro radicado nos Estados Unidos), além de possibilitar oportunidade de intercâmbio com os participantes, é claro.
Comecei a pesquisar mais a respeito do assunto pela internet, particularmente a respeito do incrível processo construtivo usado pelo Inuit (popularmente conhecido como 'esquimó'). Digo incrível porque o Inuit é habitante da Groenlândia, lugar onde só existe rocha e gelo (mais gelo do que rocha...) e onde sequer crescem árvores!
De onde conseguiam madeiras para construir seus caiaques? Que instrumentos utilizavam? Quais suas técnicas construtivas? - comecei a pesquisar sobre isso e obtive algumas respostas e mais um monte de perguntas...
Após receber resposta positiva para meu questionamento a respeito de vaga na oficina, tratei de confirmar minha participação e começar a planejar a viagem. Acabei optando por ir e voltar de carro, afinal gostaria de trazer de volta comigo o produto de todo o trabalho. Mal sabia eu que voltaria com muito mais bagagem, em forma de conhecimentos...
Levei dois dias de viagem de carro para percorrer os cerca de 1100 km até a pequena cidade de Valle Maria, na província de Entre Rios. Cheguei na véspera e fui para o belo Camping Municipal, na margem do rio Paraná. Lá chegando, encontrei logo Rony, Eiichi e vários canoístas. Além do simpósio, também aconteceria um curso de formação de instrutores de canoagem da ACA ministrado pelos brasileiros Christian Fuchs e Fábio Raimo Oliveira.
Enquanto vários saíram para remar, tratei de montar acampamento e organizar as coisas para o início das atividades no dia seguinte. O entardecer estava bonito e os mosquitos, violentos!
Tudo começou com dois sarrafos de madeira...
A oficina começou com explicações dadas em inglês por Eiichi, que eram traduzidas para espanhol - a língua dos participantes, exceto eu - e complementadas por desenhos em um quadro improvisado (que logo ganhou uma versão melhorada). O entrosamento entre os participantes logo começou, com o intercâmbio de ferramentas e de informações. A frase que mais ouvi, com certeza, foi : "dónde está el serrucho japonés?" :)
Colegas começando a trabalhar
Mestre Eiichi em ação!
[Foto de Julio Alvarez]
Foram dias de bastante trabalho, com intervalos somente para almoçar. Começávamos em geral cedo pela manhã e terminávamos o "expediente" bem depois do jantar - que tradicionalmente não é cedo, na Argentina!
Mas valeu a pena. Pouco a pouco os dois sarrafos foram ganhando complementos e se transformando em um barco...
[Foto de Julio Alvarez]
Atração turística!!!
[Foto de Julio Alvarez]
Confirmando o alinhamento
Pausa para o almoço
Intercâmbio
Definindo algumas medidas corporais
Trabalhamos até tarde da noite
Eiichi mostrando como se faz!
[Foto de Julio Alvarez]
Anibal e o café da manhã
Salgadinhos japoneses de wasabi e pimenta
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
Preparando encaixes
Um aspecto interessante desse tipo de desenvolvimento de projeto é que o caiaque é dimensionado baseado completamente em medidas corporais, ou seja, é construído especificamente para seu usuário. Em nosso "estaleiro" tínhamos oito caiaques sendo construídos da mesma forma, mas ao mesmo tempo eram diferentes entre si.
Quando chegou a etapa da confecção das "costelas" (ribs, em inglês, também chamadas de cavernas em embarcações maiores), começou a nossa preocupação. As varetas de madeira deveriam ficar mergulhadas em água por três meses para absorverem completamente a água e no momento da utilização deveriam ficar expostas ao vapor. Para isso seriam necessárias steamboxes, caixas de vapor. Mas as caixas não estavam prontas, e contamos com o valoroso auxílio de Joanne e Don para fazer uma primeira caixa. Além disso precisaríamos de um recipiente para aquecer a água e alguma espécie de encanamento para conduzir o vapor para dentro da caixa...
Joanne, Don e Julio preparando a steambox
Eiichi conferindo a instalação
No final do dia tínhamos uma caixa pronta para uso, mas o fogareiro usado revelou-se insuficientemente quente para um resultado satisfatório. Além disso, seríamos oito pessoas para usar somente duas caixas (mais uma foi construída ao longo do dia); cada caixa não comportava quantidade suficiente de varetas para um caiaque e as varetas precisariam ficar duas horas expostas ao vapor...
Mas precisávamos tentar de alguma forma, ao menos começar. O dia foi terminando e a noite mais fria do simpósio (coincidentemente) foi começando...
Colocando a engenhoca pra funcionar
Improviso
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
[Foto de Julio Alvarez]
Mutirão para preparar mais uma steambox
[Foto de Julio Alvarez]
Primeira costela...
[Foto de Julio Alvarez]
Depois de duas horas de espera e grande expectativa, "a primeira costela saiu do forno". Resultado positivo!!!
Mas várias das seguintes não repetiram o mesmo desempenho, principalmente as menores, onde a curvatura precisava ser mais acentuada. Analisando a madeira quebrada, percebia-se que a parte interna estava completamente seca, o que comprometia sua capacidade de flexão. Decidiu-se encerrar os trabalhos e começar bem cedo no dia seguinte, substituindo a chama do fogareiro por uma fogueira e colocando a segunda caixa para funcionar com esse mesmo fogareiro.
Friiiiiiio!!!
A noite foi bastante fria e de manhã cedo aproveitamos a fogueira para um incremento no café da manhã: espetinho de queijo derretido no fogo!
Steamboxes a todo vapor
Julio e Anibal na operação para colocar água
[Foto de Julio Alvarez]
A fogueira aumentou consideravelmente a quantidade de calor gerada e o vapor gerado foi satisfatório, mas mesmo com duas horas de exposição, várias varetas continuavam a se partir...
[Foto de Julio Alvarez]
Tentando dobrar uma costela
[Foto de Julio Alvarez]
Olhar atento do Mestre Eiichi
[Foto de Julio Alvarez]
Broken rib... dry wood...
Tentativas frustradas...
A solução emergencial e provisória para o problema da flexão das varetas foi adotada na cozinha que ficava ao lado de nosso "estaleiro", onde uma enorme cuba foi colocada com água quente sobre o fogão. As varetas ficaram literalmente fervendo. Eiichi confirmou que essa solução poderia até funcionar, mas não gostava dela, pois a madeira submetida à água fervente perdia a parte oleosa de sua seiva e junto com ela acabava perdendo muitas de suas propriedades mecânicas, ficando enfraquecida. Mas, como não havia alternativa, foi a solução adotada.
Um elemento interessantíssimo da construção foi a utilização do "tendão artificial" como elemento de união entre partes fundamentais do caiaque. Um simples fio de nylon - extremamente forte, na verdade -, aliado à técnica correta de fixação e tensionamento, garantiria que toda a estrutura montada suportasse as grandes solicitações enfrentadas por um caiaque em águas nem sempre calmas. Espantoso!!!
Wood Year 1962!
Eiichi deixando sua mensagem no qajaq
Iniciamos a oficina no domingo, e na sexta-feira precisamos pesarosamente nos despedir de nosso mestre e agora amigo Eiichi Ito. Um japonês com alma latina, que abriu mão de sua única semana de férias anuais - sim, os japoneses incrivelmente tiram apenas uma semana de férias por ano!!! - para atravessar o mundo em nome da divulgação da cultura náutica groenlandesa. Temos muito a lhe agradecer, Mestre Eiichi! De coração, obrigado!!!
Skinning
Apesar de nos sentirmos órfãos, continuamos o trabalho, que agora estava se encaminhando para a reta final. O próximo passo seria o skinning, a colocação da "pele" - originalmente pele de foca, atualmente substituída por tecido. Para isso contamos com o valoroso conhecimento e auxílio de Joanne, Paul e Don.
Para mim foi um dia bastante intenso, pois havia combinado com o Ipe (Luís Felipe Buff, idealizador da Sea Kayak Brasil) que colocaria provisoriamente o tecido e em seguida sairíamos em viagem (com dois carros) para retornarmos ao Brasil. Junto com o Ipe viajariam os também brasileiros Murilo Bellesi e Karin Silberberg. Aliás, como comentamos em tom de brincadeira, foi uma verdadeira invasão de brasileiros em Valle María: Rony, Paul, Fuchs, Karin, Murilo, Ipe e eu - 7 brasileiros!!!
Rony, Don, Paul, Dubside, Joanne e Eiichi - obrigado!!!
Retornando ao Brasil
Uhúúúú!!!
O retorno ao Brasil foi uma longa jornada na direção da Parati, percorrendo 1100 km com poucas paradas mas com o conforto de estar acompanhado de perto por novos amigos.
Colocando informações no papel
A construção do caiaque não foi concluída logo após o término da viagem. Depois de retornar, primeiro tratei de colocar as informações no papel e continuar o trabalho iniciado de skinning. Além disso, precisei confeccionar o aro para o cockpit e pensar em uma maneira razoável de prendê-lo no tecido.
Olhando para a proa no interior do qajaq
Olhando para a popa no interior do qajaq
Após a costura de união entre as duas abas de tecido, mesmo sem ter instalado o aro do cockpit, não contive a ansiedade e passei uma demão de tinta a óleo na parte inferior do caiaque:
Início da pintura da parte inferior
O aro para o cockpit deu bastante trabalho. Sua confecção foi através da colagem de finas lâminas de madeira de largura variável (para que fosse formada a borda externa). Depois de colar e lixar, fiz duas fileiras de furos para através delas costurar o tecido.
Storm hoop skinning!!!
Hard job!!!
Precisei enrolar e costurar a borda do tecido para que fosse possível tensioná-lo, o que não foi nada fácil. Precisei inclusive utilizar sargentos e usar muita força para manter o tecido minimamente próximo do aro e conseguir costurar a borda no aro. Inspirado no Mestre Eiichi, batizei o processo de 'storm skinning' :-)
Storm skinning!!!
Pintura da parte superior
O trabalho ainda não está terminado. É preciso aplicar mais uma demão (ou duas, dependendo do resultado) de tinta, confeccionar sacos de flutuação para colocar na proa e popa e fabricar um Tuilik e um Akuilisaq...