Saturday, March 31, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - vigésimo capítulo




Trigésimo segundo dia (23/01/01 – terça) ao
trigésimo quarto dia (25/01/01 – quinta) – Santiago do Chile

Chegando em Santiago, reencontramos nossos amigos de pedalada no Hostelling International (Albergue da Juventude). Jacson havia comprado a última passagem de ônibus para Porto Alegre e viajaria na terça-feira. Meu pai e eu teríamos que esperar até o dia 26, sexta-feira, pois todos os horários disponíveis até aquela data estavam lotados. Aproveitamos então para conhecermos um pouco mais a respeito da capital do Chile.
A cidade de Santiago situa-se em um vale, ao pé da Cordilheira dos Andes. Este vale é a parte norte do Gran Valle Central de Chile, que se estende por quase 1.000 km até Puerto Montt. A cidade possui um declive de leste para oeste, variando de uma altitude de 800 até 474 metros acima do nível do mar. A Cordilheira dos Andes não somente demarca os contornos da cidade, como projeta-se no próprio centro através do Cerro San Cristóbal, com 880 metros de altitude. Fomos visitar esse local de bela vista, subindo com um horripilante teleférico que balançava pendurado em um cabo de aço; na descida, conhecemos o funicular, composto por dois carros que deslizam em trilhos e que são unidos pelo mesmo cabo de aço – quando um sobe, outro desce. Apenas no centro do trajeto, de 45o de inclinação e 502 metros de extensão, os trilhos se dividem para dar passagem aos dois carros simultaneamente.
A ocupação da área da cidade de Santiago ocorreu a partir do ano de 1540, com a chegada de Pedro de Valdivia. Em 12 de fevereiro do ano seguinte a cidade foi batizada e, seis meses depois, arrasada pelos homens do Cacique Michimalongo, sendo posteriormente reconstruída no mesmo local, no vale do Río Mapocho. Este rio corta a cidade e, na primavera, recebe um grande aumento em seu volume; as águas de degelo, provenientes da cordilheira, são responsáveis pelo efeito.
Em 460 anos de crescimento a cidade, de quase cinco milhões de habitantes, estendeu seus limites, ocupando hoje 35 km de norte a sul e 40 km de leste a oeste. Uma organizada rede de metrôs corta os principais pontos de interesse. Visitamos várias atrações, desde prédios famosos como o Palacio de La Moneda, até um museu – Museo Chileno de Arte Precolombino (em português, pré-colombiano).
Fabrice seria o próximo a partir. Continuando sua Tour du Monde (viagem de volta ao mundo de bicicleta), seu próximo destino seria a China. [Para ver o interessante site do Fabrice, entre em tdmfabrice.free.fr] Pesquisando as opções de vôos e seus custos, optou por seguir para a Europa e de lá para a China, pois seria mais econômico do que ir aos Estados Unidos. No albergue, conversando com outros viajantes de todo o mundo, pudemos nos dar conta da exploração a que somos submetidos, como subdesenvolvidos. Em um país razoavelmente desenvolvido pode-se trabalhar em qualquer profissão menos qualificada e receber remuneração suficiente para, nas férias, viajar a qualquer parte do mundo.
No dia 25, quinta-feira, comemoramos com uma torta o aniversário de meu pai. Aproveitamos para passear e arrumar a bagagem, pois no dia seguinte tomaríamos o ônibus para Porto Alegre e, depois das exaustivas 36 horas de viagem, tomaríamos outro ônibus até Nova Petrópolis.
Trigésimo quinto dia (26/01/01 – sexta-feira) – Santiago

Distância pedalada no dia: 3,20 km.
Distância total acumulada: 3000,74 km.
Tempo pedalado: 14 min 19 s.
Velocidade média: 13,5 km/h.
Velocidade máxima: 29,0 km/h.

Na manhã dessa sexta-feira colocamos nossa bagagem nas bicicletas e rumamos para a estação rodoviária, percorrendo pouco mais de 3 quilômetros. Era a distância que faltava para completar o que havia sido previsto no início do projeto, quando as distâncias percorridas foram estimadas. Três mil quilômetros pedalados!!!
Após um sufoco no despacho das bicicletas, quando um “auxiliar” quis ganhar dinheiro por fora para “permitir” o transporte das bicicletas no bagageiro do ônibus, tivemos tempo para pensar no que havíamos feito. Percorrendo as cordilheiras, pudemos reviver os trechos percorridos e avistar as paisagens de outro ângulo. Para quem viajou de bicicleta fica muito claro o quanto se perde – em contato, em sentimentos, em paisagens – quando se viaja de carro ou de ônibus. De bicicleta estamos no lugar, não somente passamos por ele.
Nós chegamos apenas até Santiago, enxergando muito pouco do Chile. Mas podemos afirmar que o país está alguns anos à frente do Brasil. Muito mais organizado e pronto para receber o viajante, explorando a atividade turística e não o turista, como ainda ocorre por aqui, proporciona satisfação e belíssimas paisagens para quem vai viajar. A segunda etapa da viagem De bicicleta pelo Cone Sul pretende percorrer os caminhos do Sul, rumo à terra dos lagos, das geleiras e dos vulcões: a Patagônia. Percorrer uma grande extensão com uma bicicleta não é uma tarefa hercúlea, possível de ser realizada apenas por pessoas especiais com equipamentos caríssimos e tecnologia de ponta. Mas é preciso ter em mente que planejamento e determinação são fundamentais. Quanto mais conhecimento, capacidade de antecipar-se aos problemas e humildade para aprender, melhor. Quem estiver interessado, habilite-se!!!
Esse relato, desenvolvido através de vinte capítulos, certamente não tem a pretensão de contemplar todos os aspectos dessa viagem, mas pode servir de inspiração e estímulo para que mais pessoas levantem-se das poltronas e aproveitem melhor a vida. Trata-se de um ponto de vista particular acerca do projeto, escrito por quem o idealizou e teve o prazer de concretizá-lo. Todas as suas etapas, entretanto, contaram com a colaboração de várias pessoas, inclusive os “críticos de plantão”. Até mesmo eles contribuíram para o desenvolvimento, pois proporcionaram reflexões que aprofundaram dúvidas ou reafirmaram convicções.
Gostaria de registrar o auxílio e empenho fundamentais de minha família: minha irmã, pelo indispensável apoio moral e financeiro, sem os quais não poderíamos ter partido; minha mãe, pelas precauções que somente uma mãe pode ter, pelos sábios conselhos que sempre nortearam minha vida; meu pai, pelo companheirismo e determinação, por se tornar meu grande amigo e companheiro de viagem. À minha (na época, futura) namorada Elisabeth, por ter me esperado já com saudades, mesmo sem eu saber...
Aos amigos e colegas de estrada, Jacson e Fabrice (França), a certeza de que nos encontraremos em breve em alguma nova aventura.
Aos inúmeros amigos que contribuíram positivamente para o êxito da primeira parte do projeto, muitos dos quais gostariam de ter participado. Gostaria de mencionar especialmente: J. Thomas Elbling, pelo apoio financeiro para aquisição de filmes; Família Endler, pelo empréstimo de valioso material de consulta e pelas conversas e conselhos importantes, principalmente a respeito do Parque Provincial Aconcagua; amigos Renato Grubert, Clayton de Avila Rodrigues, Rainer Scheinpflug, Frederico Kroth, Élise LaForest (Canada), pelas conversas, dicas e palavras de incentivo. Aos amigos da Novotec, principalmente Manuela e Jonas, por todo o apoio e companheirismo que sempre demonstraram na realização dos mais diversos projetos.

Aos amigos do Jornal A Ponte, pela oportunidade de publicar, durante 10 meses, os vinte capítulos desta aventura, que totalizaram mais de 150.000 caracteres e incontáveis fotografias. Sem este espaço seria impossível compartilhar a viagem com os leitores.

Para agendar palestras, ver fotografias ou simplesmente trocar referências bibliográficas, contatos e idéias sobre esta ou outras aventuras, por favor entre em contato.

Obrigado!

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo nono capítulo




Vigésimo nono dia (20/01/01 – sábado) – Los Andes a Viña del Mar

Distância pedalada no dia: 134,41 km.
Distância total acumulada: 2875,80 km.
Tempo pedalado: 6 h 05 min 22 s.
Velocidade média: 22 km/h.
Velocidade máxima: 50 km/h.

Levantamos acampamento e, sem tomar café, pedalamos ao centro da cidade de Los Andes. Pretendíamos seguir ainda nesse dia até o Oceano Pacífico e, para isso, precisaríamos pedalar mais de 130 quilômetros. A vantagem – ao menos era o que pensávamos – seria poder descer dos 820 metros de altitude de Los Andes até o nível do mar. Mas, como percebemos mais uma vez, mesmo uma pedalada na descida pode ser difícil quando enfrentamos vento contrário.
No centro da cidade Jacson parou em uma oficina de bicicletas para trocar os pedais e apertar a caixa central da bicicleta. Aproveitamos a pausa forçada para tomarmos várias xícaras de café e comermos um delicioso pão com dulce de leche. Quando a bicicleta de Jacson ficou pronta passamos em uma casa de câmbio onde a curiosidade foi a quantidade de notas que recebemos. Um dólar estava cotado a 564 pesos chilenos!!! Feito isso, chegou a hora de nos despedirmos de nosso amigo Fabrice; depois de tantos quilômetros nos acompanhando, faria falta a sua companhia sempre alegre e bem disposta – sem mencionar o alarme da bicicleta, que de vez em quando insistia em tocar no meio da pedalada! Fabrice seguiria pelo caminho mais curto a Santiago, pois precisaria agilizar o visto e a passagem de avião para sua próxima etapa na Volta ao Mundo: a China. Talvez voltássemos a encontrá-lo na capital chilena, dependendo da burocracia que ele encontrasse por lá. Como o nosso objetivo era muito mais modesto, tomamos a estrada rumo ao oceano.
O diário de viagem registra que a estrada estava bastante remendada e seguia entre árvores, plantações de frutas e vilarejos que pareciam ser muito antigos. Várias construções eram de barro com capim. O vento aumentou bastante, sempre contrário. Começamos a nos separar. Eu seguia na frente, depois vinha o pai e por último o Jacson. Parei em um armazém na entrada de Llay-Llay para comprar iogurte. Pouco depois o pai chegou e tomou outro. Algum tempo depois chegou Jacson.
Voltando a pedalar, o pai e eu seguimos juntos e o Jacson ficou para trás. Entramos em uma auto-estrada (autopista) e pedalamos bastante para vencer o vento contrário. Passamos por um túnel [Tunel La Calavera] e paramos no meio da tarde em frente ao Lomito, um restaurante semelhante ao Mac Donalds. Comprei fritas, suco e chocolate e almoçamos na beira da estrada, esperando o Jacson. Mas ele não chegou e resolvemos continuar a viagem. Subidas e descidas se alternavam e cansamos bastante por causa do vento forte. Na entrada de Viña del Mar paramos em um posto para tomar suco de laranja.
O litoral chileno é formado, nessa região, pela Cordilheira Litorânea. Para chegar ao Oceano Pacífico precisamos descer a Cordilheira dos Andes, passar por uma região plana (Vale Central), subir novamente (Cordilheira Litorânea) e, finalmente, descer até o mar. Então descemos bastante até chegar ao centro de Viña del Mar, uma praia movimentadíssima com trânsito caótico. Paramos para ver o Oceano Pacífico.
Havíamos chegado ao outro lado do continente. Não estávamos eufóricos nem choramos de emoção. Apenas ficamos orgulhosos de podermos percorrer uma distância tão grande com nosso próprio esforço. A praia possuía arrebentação formada por apenas uma onda bastante forte que, quando se formava, levantava uma parede d’água esverdeada. Ficamos algum tempo observando esse espetáculo.
No calçadão da praia circulavam milhares de pessoas. Seria praticamente impossível encontrar nosso companheiro de viagem. Com o dia findando, tratamos de procurar um local para ficarmos. Paramos em um centro de informações turísticas onde fomos muito bem atendidos. Todos os hotéis e pousadas estavam lotados – especialmente aqueles que procurávamos, bons e baratos – e seria difícil conseguir uma acomodação. Graças à boa vontade de uma funcionária, conseguimos encontrar uma pensão familiar bem na área central da cidade.
Transportamos as bicicletas escada acima e colocamos em um quarto com seis camas (três beliches). Fui tomar banho – finalmente um banho quente, com bastante água! [no camping de Los Andes havíamos tomado banho frio] – e escovar os dentes. Quando o pai foi tomar banho eu saí para ver a avenida. Uma multidão olhava lojas, vendedores ambulantes e artistas de todos os tipos. Estátuas vivas, tocadores de violão, gaita de boca, dançarinos, equilibristas e até um tocador de gaita-de-foles.
Voltando ao apartamento, registrei que o contraste com a rua era grande: o prédio e os cômodos são antigos, assim como a senhora que nos atendeu. É silencioso e até um pouco escuro à noite.
Saindo novamente, jantamos “pollo com agregado” (frango e salada) e tomamos suco de laranja. Na volta pudemos assistir a um incrível espetáculo de palhaços de rua: enquanto dois brincavam fazendo malabarismos com fogo, outros tocavam – excelentemente – saxofone, baixo e bateria. Ao final do espetáculo fomos dormir. Despenquei em meu beliche e adormeci imediatamente.

Trigésimo dia (21/01/01 – domingo) – Viña del Mar

Distância pedalada no dia: -
Distância total acumulada: 2875,80 km.

Aproveitamos o domingo para passearmos na cidade de Valparaíso, vizinha de Viña del Mar. Passamos em uma central de informações, tomamos um trem e descemos em frente ao porto, onde estava atracado um imenso e luxuoso navio de cruzeiro. Situada a 120 km de Santiago, Valparaíso é o primeiro porto comercial do Chile e, curiosamente, é uma cidade que nunca foi fundada, mas nasceu espontaneamente em 1536, após a chegada do espanhol Juan de Saavedra. Sua população beira os 300.000 habitantes.
Como a cidade é cercada por 45 morros escarpados, começamos a subir, passando por ruelas estreitas e cheias de esquinas abruptas. Paramos no Café Turri, situado no Cerro Concepción, onde almoçamos com uma excelente vista para o oceano. A geografia da cidade proporcionou o desenvolvimento de um meio de transporte inusitado: os ascensores. Pequenas cabines de madeira rebocadas por cabos de aço, os ascensores deslizam por trilhos nas íngremes encostas dos cerros. Nas proximidades do Café Turri aproveitamos para andar no Ascensor Concepcion, o mais antigo de Valparaíso. O friozinho na barriga foi inevitável...
Tomando o trem de volta a Viña del Mar, aproveitamos a tarde para visitar a Feria de Artesania e uma feira de livros. No final da tarde segui a pé até o mall (shopping) e encontrei os guias de viagem sobre o Chile. Na fase de preparação do projeto a bibliografia havia sido escassa e, pensando na próxima etapa da viagem (Patagônia Chilena), resolvi procurar guias e mapas. Na volta para o residencial pude observar o entardecer sobre o Pacífico.
Trigésimo primeiro dia (22/01/01 – segunda) – Viña del Mar a Santiago do Chile

Distância pedalada no dia: 121,73 km.
Distância total acumulada: 2997,53 km.
Tempo pedalado: 5 h 39 min 19 s.
Velocidade média: 21,5 km/h.
Velocidade máxima: 66,0 km/h.

Saímos de Viña del Mar no início da manhã. Atravessamos trilhos de trem e iniciamos uma lenta subida, percorrendo e ultrapassando a Cordilheira Litorânea. Passamos por pequenos vilarejos e por regiões com grandes extensões de videiras onde são produzidos os bons vinhos chilenos, como o Concha y Toro. Pedalávamos entre dois, esperando encontrar nosso companheiro de viagem na capital chilena.
Nesse dia de pedalada passamos pelos últimos dois túneis da viagem: Tunel Zapata e Tunel Lo Prado. Pouco antes do primeiro passamos pelo Valle de Casablanca, que impressiona pela profunda modificação causada na paisagem árida pelas plantações de videiras. Passando pelo Tunel Zapata (1.300 metros de comprimento), que ficava na metade do caminho para Santiago, pedalamos até o Tunel Lo Prado (2.800 metros de comprimento), onde fomos parados e uma grande fila de caminhões e automóveis começou a se formar. Um caminhão havia estragado no interior do túnel, deixando somente uma via liberada para passagem. Não poderíamos seguir pedalando, precisávamos colocar as bicicletas em cima de uma pequena viatura de transporte. Sem outra opção, carregamos as bicicletas e os alforjes e esperamos nossa vez. Pouco depois do túnel entramos na zona urbanizada dos arredores de Santiago. Conseguimos nos orientar bem e seguimos diretamente para o Hostelling International Santiago. Na chegada encontramos Jacson e ficamos sabendo que Fabrice também estaria no mesmo albergue. Reencontramos nossos companheiros de viagem!

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo oitavo capítulo




Era a última tarde em que estávamos no Parque Aconcágua, desfrutando o cenário belíssimo do Vale Horcones entre majestosas montanhas. Depois de retornarmos da caminhada a Confluencia (3320 metros de altitude) tratamos de preparar a janta: massa e chá. Pouco tempo depois nossos companheiros de viagem – Fabrice e Jacson – também chegavam. A noite havia sido bastante fria em Confluencia, inclusive com alguns flocos de neve misturados com chuva gelada. Jantamos novamente e tomamos café com leite. No dia seguinte voltaríamos a pedalar.

Vigésimo oitavo dia (19/01/01 – sexta) – Parque Aconcagua a Los Andes

Distância pedalada no dia: 81,18 km.
Distância total acumulada: 2741,39 km.
Tempo pedalado: 4 h 17 min 09 s.
Velocidade média: 18,9 km/h.
Velocidade máxima: 58,0 km/h.

Conforme o registro no diário não foi uma noite bem dormida. Por volta das quatro horas da manhã levantei para “ir ao banheiro” e percebi que o céu estava completamente encoberto por nuvens baixas. Só podia perceber o contorno das montanhas mais próximas. Voltei para a barraca desejando que não chovesse.
Acordamos com tempo parcialmente nublado e, tomando café com leite e comendo pão, tratamos de arrumar todo o material nos alforjes das bicicletas. Quando nos preparávamos para a última fotografia antes de colocarmos o pé na estrada, chegaram dois suíços, também de bicicleta. Fabrice conversou em francês com os dois, contando que eles também chegavam para conhecer o belo Parque Aconcagua.
Descemos pela estrada de terra de acesso ao parque e, chegando ao asfalto da Ruta 7, começamos a subir. Estava bastante frio, mas felizmente ainda sem o forte vento. Passamos por um túnel curto e logo em seguida chegamos a Las Cuevas um pequeno vilarejo a 3112 metros de altitude com vários prédios construídos com pedras. Logo em seguida teríamos que passar pelo túnel do Paso Sistema Cristo Redentor, onde temíamos não poder pedalar.
Ao lado da estrada freqüentemente observávamos postes pintados com faixas vermelhas e amarelas e com pequenas placas nas alturas de 1, 2, 3 e 4 metros. Como varas de medição, indicam a altura da capa de neve que cobre a estrada no inverno e sinalizam o caminho para a máquina de limpeza que desobstrui a pista.
Um grande pelotão argentino de ciclistas de estrada chegou logo em seguida, com carro e ônibus de apoio. Ficamos sabendo que eles também pretendiam atravessar a fronteira para o Chile. Esperamos e, para nosso espanto, eles seguiriam no ônibus, tendo as bicicletas carregadas em um reboque. Apesar da travessia de bicicleta ser proibida – como ficamos sabendo, pelo perigo da exposição aos gases dos veículos no interior do túnel –, não pretendíamos fazer o mesmo, pois havíamos atravessado toda a Argentina pedalando. Conversando com policiais da Aduana Argentina, conseguimos uma escolta pelo túnel Caracoles, o antigo túnel por onde passava a estrada de ferro transandina. Atualmente este túnel, paralelo ao novo túnel por onde passa a rodovia, serve como acesso de emergência e alternativa para o transporte de cargas perigosas.
Escoltados por um policial montado em um quadriciclo, seguimos em direção à entrada. O policial, além de nos dar segurança, seguiria para iluminar nosso caminho, já que o túnel, com três mil e novecentos metros de extensão, era completamente escuro. Seguindo pela escuridão, pedalávamos pensando que a próxima visão que teríamos da Cordilheira dos Andes já pertenceria ao Chile. Em alguns lugares percebíamos trechos recobertos com concreto; em outros, a fria rocha nua nos lembrava que estávamos a 3185 metros de altitude, atravessando por dentro das montanhas no Coração dos Andes!!!
Percebendo a fraca luz da saída do túnel ao longe, nossa escolta acelerou e nos deixou para trás. Pudemos apreciar os últimos metros de pedalada naquele local inusitado ouvindo somente o ruído dos pneus rodando no pavimento onde outrora passava o trem transandino. Ao voltarmos para a bem-vinda luz solar, chegávamos ao território chileno!!! Fomos bem recebidos por um funcionário que nos forneceu as indicações do que encontraríamos logo adiante. Passamos pelas ruínas de uma antiga estação de trem e pudemos ver os antigos trilhos desse sistema férreo que é muito bem descrito no guia Turistel: “A linha férrea acompanha a estrada. Tem vários túneis e coberturas, construídos como proteção para as avalanches de pedra e neve. [...] Esta grande obra de engenharia foi inaugurada em 5 de abril de 1910, sob a direção dos americanos Juan e Mateo Clark. Originalmente as locomotivas eram propulsadas a carvão; a eletrificação ocorreu na década de 1940. As locomotivas elétricas de alta montanha possuíam certas características especiais: eram articuladas no meio para permitir os estreitos giros do traçado ferroviário; tinham um grande trilho dianteiro para limpar a neve; levavam depósitos de areia que era jogada sobre os trilhos cobertos de gelo para conseguir melhor atrito das rodas e, no centro, tinham uma roda dentada extra que corria sobre a cremallera. Esta última era uma espécie de trilho de aço dentado que permitia a subida nas pendentes pronunciadas. Isto pode ser visto em Portillo e na Aduana Los Libertadores”.
Imaginávamos que, depois de subir a cordilheira, naquele momento simplesmente poderíamos descer. Mas não foi bem assim. Apesar do grande declive, precisávamos pedalar contra o forte vento montanha acima. A belíssima paisagem, no entanto, compensava qualquer esforço. Em pouco tempo chegávamos ao Complejo Fronterizo Los Libertadores, onde quatro organismos estão reunidos para fiscalizar a entrada e saída: Carabineros de Chile, Policía Internacional, Servicios de Aduanas e Servicio Agrícola y Ganadero. Além de mostrarmos nossa documentação de entrada e saída da Argentina, tivemos que abrir os alforjes das bicicletas para que um fiscal examinasse o conteúdo, pois alimentos perecíveis não poderiam ser levados.
Seguindo viagem, pedalamos mais um pouco até chegarmos ao famoso Hotel Portillo, às margens das águas incrivelmente verde-azuladas da Laguna del Inca, um belíssimo reservatório natural formado pela ação de um glaciar que, depositando sedimentos ao longo do tempo, formou um lago espremido entre as montanhas – entre elas, os Nevados Tres Hermanos, que emolduram a paisagem por trás da laguna. No inverno as águas congelam e é possível optar entre esquiar ou tomar um banho ao ar livre na piscina aquecida do hotel, bem ao lado da neve.
Voltando a pedalar, passamos por uma placa que alertava: maxima precaucion – curvas cerradas sucesivas. Chegávamos à região conhecida – e, note-se, bem denominada – como Los Caracoles. A estrada seguia serpenteando pelo único local possível entre as montanhas. Curva após curva, avançávamos maravilhados com a paisagem quando, em meio à aridez das pedras e do pó, encontramos uma ponte de gelo sobre as águas do rio que seguia vale abaixo. Para confirmar, desci por uma encosta de cascalhos soltos que quase causou um acidente e fui ver de perto a ponte. Era realmente gelo, milhões de grãos compactados que resistiam ao sol de verão e às águas turbulentas do rio.
Sempre descendo, lentamente vimos a paisagem se modificar ao longo do dia: a paisagem árida começou a ser substituída por alguns tufos esparsos de capim; pouco adiante apareciam os primeiros arbustos e, mais ao longe, frondosas árvores. Passamos pelo Salto del Soldado, onde uma enorme massa granítica foi esculpida pelas águas do rio, formando uma estreita garganta bem ao lado da estrada. Nesse local um soldado, fugindo de seus terríveis perseguidores, teria se jogado penhasco abaixo, mergulhando nas águas revoltas.
O final da tarde se aproximava e precisávamos encontrar um local para acamparmos. Na entrada da cidade de Los Andes (820 metros de altitude), fundada em 1791 e atualmente com 55000 habitantes, encontramos um camping com restaurante e banheiros. No dia seguinte nosso amigo Fabrice pretendia seguir diretamente para Santiago, pois precisava agilizar a documentação e conseguir o visto de ingresso na China para mais uma etapa de sua viagem de volta ao mundo. Nós seguiríamos primeiro para Viña del Mar e Valparaíso, pois pretendíamos alcançar o Oceano Pacífico. À noite o jantar foi caprichado e brindamos com vinho o fato de estarmos realizando os nossos sonhos. Fabrice nos mostrou, através da tela de cristal líquido da filmadora, alguns lugares por onde havia passado. Pudemos recordar o desvio alagado onde as bicicletas seguiram por dentro d’água, a travessia da Argentina, com suas imensas retas, a Cordilheira dos Andes, com suas fantásticas montanhas...

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo sétimo capítulo




Vigésimo sétimo dia (18/01/01 – quinta) – Parque Provincial Aconcagua

Distância pedalada no dia: -
Distância total acumulada: 2660,20 km.

Amanheceu um belo dia, sem nuvens e com pouco vento. Pouco a pouco o calor do sol atingiu o Vale Horcones e elevou a temperatura que, durante a noite, havia baixado significativamente. Verifiquei a influência da sombra e do vento na temperatura: exposto ao sol e abrigado do vento pela barraca, o termômetro marcava vinte graus centígrados; no vento e à sombra, registrava apenas cinco graus!!!
Logo no início da manhã a movimentação incomum em torno do helicóptero de resgate nos chamou a atenção. Pouco depois da decolagem a aeronave retornava, trazendo um cambaleante andinista com olhos vendados. Uma ambulância já o aguardava e rapidamente a vítima foi levada para um hospital. Uma demonstração clara de que a ascensão daquela montanha exigia séria preparação.
Tomamos café e arrumamos o material na barraca, separando o essencial para a caminhada que pretendíamos fazer: casacos, água, um pequeno lanche e, claro, as máquinas fotográficas e os filmes. Pouco depois de deixarmos o acampamento passamos pela bela Laguna Horcones (2900 metros de altitude) e mais uma vez pudemos ver a imagem do Aconcagua refletida em suas águas. Seguimos por uma trilha nitidamente marcada em terreno pedregoso que margeava o Río Horcones. Trinta minutos depois, atravessávamos o rio por uma ponte suspensa por cabos na Quebrada del Río Horcones, bem próxima da Quebrada del Durazno. A partir daí a trilha seguia por terreno um pouco mais íngreme onde curiosas formações rochosas podiam ser admiradas. Algumas rochas pareciam prontas a desabar a qualquer momento; outras, como pontas de flechas, apontavam para o céu. Passamos por uma encosta inclinada onde escorregar não seria aconselhável: muitos metros abaixo, as águas revoltas do rio espremiam-se entre grandes pedras.
Seguindo pela trilha, caminhamos por aproximadamente duas horas e meia e novamente voltamos a nos aproximar do rio. Uma precária ponte improvisada sobre duas pedras permitia a passagem até a trilha que subia pela outra margem do rio. Estávamos chegando na Confluencia, região de encontro entre dois vales importantes na aproximação do Aconcagua. À direita, uma trilha seguia em direção ao Glaciar Horcones Inferior, ponto de passagem obrigatória para os escaladores da perigosíssima Parede Sul; à esquerda, a trilha seguia até o acampamento Confluencia e rumava de lá para a Plaza de Mulas, acampamento base para a grande maioria dos andinistas (que optavam pela rota menos difícil, chamada Via Normal). Atravessando mais uma ponte improvisada, chegamos ao acampamento Confluencia. Entre algumas barracas encontramos a dos amigos Fabrice e Jacson, que lá haviam passado uma fria noite (como saberíamos mais tarde). Deixamos uma mensagem sobre algumas pedras dentro da barraca, tomamos água cristalina e gelada diretamente de um riacho oriundo das geleiras e, após o registro fotográfico, retornamos pela mesma trilha. Se antes o Aconcagua dominava a paisagem por entre as montanhas, agora era a grandiosidade do vale que nos fascinava. Camadas de rocha em todas as direções tornavam as montanhas extremamente interessantes e a extrema limpidez do ar permitia a visão das paisagens mais longínquas. A falta de perspectiva em cenário tão grandioso distorcia nossa capacidade de avaliação: o que pareciam pequenas pedras na verdade eram rochas maiores do que edifícios!!! Foi muito bom poder compartilhar com meu pai, meu verdadeiro amigo, paisagens tão fantásticas.
A poeira acumulada sobre as botas serviu de quadro-negro para o registro: Aconcagua 2001. Quando voltaríamos para esse belíssimo cenário? Algum dia nos atreveríamos a ultrapassar os nossos limites, tentando chegar no alto da montanha? São perguntas que ainda não podemos responder. Quem sabe...

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo sexto capítulo




Vigésimo sexto dia (17/01/01 – quarta) – Parque Provincial Aconcagua

Distância pedalada no dia: -
Distância total acumulada: 2660,20 km.

O Parque Provincial Aconcagua [os termos sem acentos respeitam a grafia em espanhol] está situado na Provincia de Mendoza, a oeste da capital de mesmo nome, inteiramente na República Argentina. Foi declarado Area Nacional Protegida em 1983 e é uma das onze Reservas Naturales que formam o Sistema de Areas Naturales Protegidas da província. Compreendendo aproximadamente 71000 hectares, protege um importante setor dos Andes cuja altitude máxima encontra-se no topo do Cerro Aconcagua – 6962 metros sobre o nível do mar.
O Cerro Aconcagua está inteiramente dentro do parque e não forma limite com a República do Chile; suas coordenadas são 69o 59’ de longitude oeste e 32o 39’ de latitude sul, situando-se, portanto, em latitude um pouco maior do que Nova Petrópolis e Porto Alegre (30o sul). As vias de acesso à montanha são pelo Río Horcones e pelo Río Vacas, levando aos dois principais acampamentos-base, Plaza de Mulas e Plaza Argentina.
A entrada do parque mais freqüentada (80 % dos acessos) se encontra a poucos quilômetros de Puente del Inca; nessa entrada localiza-se a Jefatura Central do parque, em uma cabana denominada Refugio de Horcones, a 2850 metros de altitude. Da Jefatura são coordenadas todas as atividades de manejo do parque, bem como o serviço de resgate de helicóptero.
De acordo com os comentários dos guias internacionais que chegam à montanha todos os anos e que já escalaram montanhas no Himalaia, os quase 7000 metros do Aconcagua equivalem, tanto em esforço físico quanto psicológico, à ascensão de uma montanha de 8000 metros. Isto se deve às condições climáticas dos Andes Centrais que, na mesma altitude, são muito mais severas que no Himalaia onde, por exemplo, a vegetação chega até os 5000 metros de altitude; nos Andes Centrais, ao contrário, a cobertura vegetal dificilmente chega aos 3500 metros acima do nível do mar. No Aconcagua a umidade relativa é extremamente escassa e a porcentagem de oxigênio também diminui pela mesma razão. Os ventos produzem zonas de baixa pressão que intensificam esses efeitos. O aspecto desértico e o isolamento afetam psicologicamente o mais preparado andinista, contribuindo para aumentar a dificuldade da ascensão. Deve-se ter em conta também que os acampamentos-base, dos quais são iniciadas as escaladas, encontram-se a mais de 4000 metros de altitude. A maioria das montanhas da Europa e dos Estados Unidos não chegam a essa altitude, motivo pelo qual os alpinistas europeus e americanos não estão acostumados a essas condições e não dão importância aos sinais de perigo, conhecidos pelo nome genérico de mal da montanha. O mal da montanha é o resultado da falta de aclimatação – adaptação do organismo humano à altitude – e afeta uma grande porcentagem de andinistas. Se não for tratado adequadamente pode dar origem a um edema pulmonar ou cerebral e colocar em risco a vida não somente da pessoa afetada, mas também de seus colegas de escalada, visto que a remoção de uma pessoa incapacitada de uma montanha expõe as pessoas envolvidas a uma série de riscos.

Na manhã do primeiro dia de acampamento no Parque Provincial Aconcagua acordamos com tempo bom, céu azul e sol forte. Ansiosos por apreciar as paisagens das quais antes só tínhamos relatos ou fotografias, não percebemos que os efeitos da altitude já se faziam presentes. Mais tarde eles seriam detectados.
Ainda no início da manhã pudemos testemunhar a habilidade dos pilotos de helicóptero de resgate. Essa mesma aeronave, como um grande adesivo indicava, havia sido utilizada na Eco Challenge da Patagônia, uma das maiores corridas de aventura do mundo (patrocinada pelo Discovery Channel). O ar rarefeito devido à altitude provocava perda de sustentação do aparelho, o que foi facilmente observado quando o helicóptero decolou, seguindo rapidamente por entre as montanhas. No retorno, já com bastante vento, a precisão do pouso naquelas circunstâncias foi impressionante.
Daniel, nosso colega argentino de pedalada por alguns dias despediu-se e seguiu rumo a Viña del Mar. A primeira providência após o café da manhã foi a regularização de nossa permanência no parque (através da validação do Permiso de Ingreso que havíamos recebido em Mendoza), feita em uma tenda em frente à cabana do Refugio de Horcones. Com a permanência de três dias no parque concedida, lá fomos nós conhecer a Laguna de Los Horcones (2900 metros de altitude), mirante natural fantástico onde o Aconcágua pode ser visto refletido na água. Naturalmente, tiramos também uma fotografia em frente à placa que se refere ao Aconcagua. Um comboio de mulas – comumente utilizadas para o transporte do volumoso equipamento para alta montanha – seguia pela trilha ao longo do Vale Horcones rumo à Plaza de Mulas, a 4265 metros de altitude. Pareciam pequenas formigas se comparadas à grandiosidade das montanhas que nos cercavam.
Retornando ao acampamento, combinamos que Fabrice e Jacson iriam a Puente del Inca comprar mantimentos, enquanto Egon e eu mudaríamos a barraca para um local mais adequado, aproveitando a intensidade ainda fraca do vento. Escolhemos uma área coberta por capim nas proximidades do refúgio e tratamos de ancorar a barraca com pedras, o que se revelou uma boa estratégia para enfrentar os ventos fortes. O Vale do Río Horcones não tinha esse nome por acaso...
Os efeitos da altitude começaram a se revelar quando meu resfriado se transformou em mal estar e secreções com sangue. Decidi que continuaria acampado com meu pai e não seguiria mais adiante se não melhorasse; Fabrice e Jacson iriam até Confluencia, bifurcação entre os caminhos para dois acampamentos-base e lá montariam uma barraca para passar a noite.
Preparamos um almoço à base de massa e organizamos o material. Por volta das duas horas da tarde Fabrice e Jacson seguiram caminhando rumo a Confluencia. Meu pai e eu tratamos de colocar as bicicletas juntas, presas pelo meu cadeado a uma cerca de madeira. Lá elas estariam seguras no seu descanso de três dias. Com o material organizado e o novo acampamento montado, fomos caminhar até a aduana onde havíamos estado na tarde anterior. De lá pudemos enviar notícias para casa e ficar sabendo que todos estavam bem. Aproveitamos para tomar um suco de laranja. O vento estava frio e algumas nuvens começavam a se aproximar. Tratamos de voltar, pois os chuviscos que começavam a cair estavam realmente gelados! Algumas vezes eu precisava tossir e eventualmente expelia um pouco de sangue; o organismo avisava que estava debilitado. No retorno ao acampamento tratei de me enfiar no saco de dormir, pois o repouso seria a melhor alternativa. Após a janta preparada pelo pai – pão com doce de leite e, para beber, café com leite –, conversando, ficamos imaginando como estariam se comunicando os nossos companheiros, pois Jacson não falava inglês ou alemão e Fabrice mal “arranhava” o espanhol; logo ficaríamos sabendo que eles haviam conseguido se entender sem problemas. A temperatura caiu bastante durante a noite e o céu, estrelado, nos fez sonhar com as novas paisagens do dia seguinte...

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo quinto capítulo




Vigésimo quinto dia (16/01/01 – terça) – Uspallata ao Parque Aconcagua

Distância pedalada no dia: 79,64 km.
Distância total acumulada: 2660,20 km.
Tempo pedalado: 5 h 54 min 43 s.
Velocidade média: 13,5 km/h.
Velocidade máxima: 71,0 km/h.

Demoramo-nos bastante na pequena cidade de Uspallata, a 1751 metros de altitude, antes de seguirmos viagem pela Cordilheira dos Andes. Percorremos vários quilômetros em uma região ampla e plana rodeada por altas montanhas antes de entrarmos novamente no estreito vale formado pelo rio Mendoza. As montanhas que surgiam a cada nova curva da estrada eram surpreendentes, quer pelo seu formato, quer pelo colorido. Em uma mesma montanha podíamos ver faixas de minerais avermelhados, esverdeados, azulados, claros e escuros. O ar, livre da presença de poluentes, permitia a visão a grandes distâncias, o que modificava completamente a perspectiva. Uma montanha que parecia estar “logo ali” na verdade estava a muitos quilômetros. A erosão provocada pelas águas na margem do rio parecia ter apenas alguns metros de altura mas, quando comparada com a altura de uma estação férrea abandonada, revelava ter mais de cinqüenta metros!
O dia estava ensolarado e bastante quente, convidando-nos a uma parada em um rio de águas geladas – um afluente do rio Mendoza – que passava sob uma ponte antiga. Bebemos aquela água extremamente limpa que jorrava diretamente dos picos gelados da cordilheira: uma delícia! Jacson enfrentava novamente problemas com a bicicleta, provavelmente ocasionados pelo excesso de peso. Resolveu retirar toda a bagagem e desmontar a roda para verificar o que havia. Fabrice aproveitou a parada forçada para fazer um lanche.
De volta à estrada, seguimos pedalando e cruzamos o rio pouco antes de chegarmos a Punta de Vacas (2325 metros de altitude), onde encontramos uma Gendarmeria Nacional da Argentina e o primeiro acesso ao Parque Provincial Aconcagua, a Quebrada del Río Vacas. Uma trilha acompanhando esse rio dá acesso às paredes leste e norte do Aconcagua para os montanhistas que desejam se aventurar pelas vias de escalada daquelas faces.
Pouco adiante de Punta de Vacas dois vales importantes se encontram, o Vale do Tupungato e o Vale Inca. Tupungato é um imponente vulcão com 6650 metros de altitude, menos famoso mas tão ou mais difícil de ser escalado do que o Aconcagua. No encontro entre esses dois vales a estrada desviava bruscamente para a direita, seguindo pelo Vale Inca ao lado do Río de Las Cuevas. Ao “dobramos a curva” parecia que alguém com espírito brincalhão resolvera ligar um ventilador gigante: recebemos uma verdadeira bofetada de vento. As bicicletas seguiam com dificuldade em primeira marcha quando percebi um estalo e senti que um raio da roda traseira havia se partido. Com a roda torta, a melhor opção foi empurrar a bicicleta nos trechos mais íngremes, evitando que o problema se agravasse. Pouco adiante chegávamos em Los Penitentes – uma estação de esqui a 2580 metros de altitude – e, na providencial parada, a roda foi provisoriamente endireitada (mas ainda com um raio faltando).
Reiniciando a jornada pela Ruta 7, deixamos a estrada asfaltada e seguimos por uma trilha até o Cementerio de los Andinistas. Inúmeras lápides com inscrições nos mais diversos idiomas e alguns túmulos com lembranças de escaladas – fragmentos de cordas ou objetos utilizados nas escaladas – nos fizeram refletir sobre o nosso entusiasmo pela cordilheira. Muitas das pessoas que jamais voltaram da montanha foram para lá despreparadas, sem a menor noção do que significa a escalada no mais alto cume das Américas (e, com exceção do Himalaia, do mundo). Nós, que visitaríamos apenas a base do Aconcagua, sentiríamos na pele os efeitos da altitude.
A tarde avançava e, como queríamos chegar ainda com a luz do dia na entrada do Parque Provincial Aconcagua, voltamos à estrada. Poucos quilômetros adiante chegamos a um dos mais interessantes monumentos naturais de toda a viagem a 2720 metros de altitude. Puente del Inca é uma ponte natural de 50 metros de comprimento, 15 metros de largura e 40 metros de altura que forma uma barreira no vale do rio Las Cuevas, cujas águas vão engrossar mais adiante no rio Mendoza. Exatamente a montante da ponte, jorram três nascentes termais: Netuno (370 C), Champaña (390 C) e Vênus (400 C). As suas águas, com forte teor de calcário, têm o estranho poder de petrificar todo e qualquer objeto nelas intencionalmente deixado pelos turistas. Além disso, conferem às rochas estranhas cores, pelas reações químicas que provocam. O poder curativo destas águas era conhecido desde a época inca, o que explica o nome do local. Aí acorriam, em busca de um tratamento eficaz, indivíduos que padeciam de doenças da pele, artrite, afecções respiratórias...
Impossível resistir! Atravessamos a Puente del Inca e, apesar do vento frio, lá fomos nós para o banho! A pequena piscina natural estava realmente quente e qualquer parte do corpo que ficava exposta ao vento imediatamente denunciava que sair daquela água borbulhante brotando da terra seria bem difícil... No exato instante em que saltei para o vento gelado percebi o significado da palavra hipotermia. Meu corpo tremia convulsivamente de tal maneira que colocar os cadarços das botas nos passadores se tornou uma tarefa quase impossível. Tratei de correr, pular e tentar me esconder do vento descendo as escadarias ao lado da Puente para conseguir me aquecer. Com o frio relativamente controlado, pude me deter na observação do local em que estava. Um hotel havia sido construído ao lado da Puente, aproveitando as termas de água quente. No inverno de 1965, porém, uma avalanche provocou a destruição quase total da construção. A partir desse acontecimento a água carregada de sais minerais passou a recobrir paredes, piso, escadas e teto do que restou da construção, colorindo-a com tons amarelados e dando um aspecto semelhante ao da rocha.
Como o dia estava findando, montamos novamente nas bicicletas e seguimos novamente pela Ruta 7. Paramos no Complejo Aduanero Los Horcones para regulamentar a documentação que necessitaríamos para sair da Argentina. Quando entrássemos em território chileno deveríamos passar por uma aduana chilena. Os trâmites burocráticos foram rápidos e logo pudemos seguir os poucos quilômetros que faltavam até a entrada do parque. Pudemos apreciar a primeira visão do imponente pico do Aconcagua antes mesmo de entrarmos na estrada de chão batido que dá acesso ao Parque Provincial. Nuvens espessas nas proximidades indicavam que, provavelmente, uma nevasca se abatia sobre a montanha. Mesmo no verão as tempestades de neve ocorrem constantemente e as temperaturas podem chegar a trinta graus negativos nos locais mais elevados e expostos ao vento originário do Oceano Pacífico.
Chegamos à entrada do parque e tratamos de montar acampamento para aproveitar os últimos instantes de claridade. Coincidentemente encontramos três gaúchos que nos indicaram os locais mais indicados para acampar. A temperatura começou a cair, forçando-nos a procurar o abrigo da barraca e o conforto do saco de dormir. No dia seguinte teríamos tempo para contemplar a incrível paisagem do Parque Provincial Aconcagua. Estávamos no coração dos Andes!!!

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo quarto capítulo




Vigésimo quarto dia (15/01/01 – segunda) – Mendoza a Uspallata

Distância pedalada no dia: 122,48 km.
Distância total acumulada: 2580,56 km.
Tempo pedalado: 6 h 20 min 32 s.
Velocidade média: 19,3 km/h.
Velocidade máxima: 62,0 km/h.

Preparamo-nos para deixar a bela cidade de Mendoza, com suas ruas arborizadas e as características canaletas para água do degelo. Arrumamos o equipamento nos alforjes das bicicletas, tomamos café, posamos para uma fotografia em frente ao albergue e colocamos o pé na estrada, deixando esse local tão simpático para trás. Cruzamos o rio Mendoza, que mais tarde acompanharíamos em seu curso pelo interior da cordilheira.
Primeiramente desviamos para o sul, passando pela refinaria de petróleo de Luján de Cuyo e por pequenas propriedades onde o cultivo de frutas parecia ser uma regra. Desviamo-nos da estrada principal e tomamos uma simpática rodovia ladeada por árvores, extremamente agradável. Estávamos felizes pela aproximação da cordilheira, o ponto alto (em todos os sentidos) da viagem. E logo pudemos contemplá-la, em todo o seu esplendor, com altos picos cobertos de neve eterna.
Avançando pela Ruta 7, fomos nos aproximando cada vez mais da pré-cordilheira até que começamos a pedalar entre as montanhas. Inicialmente houve uma subida constante e uma grande descida até a localidade de Potrerillos, onde paramos para almoçar. Quase sem perceber, já estávamos em uma região típica da pré-cordilheira, a 1351 metros de altitude. Nessa parada para o almoço encontramos o Daniel, um ciclista argentino que estava fazendo uma pequena viagem ao Chile. Oferecemos a nossa alegre companhia e o grupo aumentou para cinco ciclistas. Teríamos ainda cinqüenta quilômetros sem pontos de reabastecimento para percorrer, então tratamos de levar toda a água possível.
A estrada seguia sempre ao lado da antiga ferrovia trans-andina, que ora estava numa, ora na outra margem do rio Mendoza. A construção dessa ferrovia deveria ter sido uma tremenda obra de engenharia, pois ela seguia serpenteando espremida entre o rio e os paredões de pedra das montanhas. Com o advento do transporte rodoviário (e toda a pressão econômica daí advinda) a ferrovia foi esquecida e abandonada. Avalanches e desmoronamentos de pedras destruíram vários trechos em locais mais expostos. Algumas vezes montanhas imensas desciam diretamente até a estrada, obrigando-nos a passar por uma sucessão de túneis.
No diário de viagem escrevi que a paisagem nesse dia foi belíssima, pois passávamos por gargantas estreitas bem ao lado do rio Mendoza, cujas águas marrons bem agitadas eram um convite para uma descida de caiaque ou de bote. As montanhas tinham várias cores e formatos e no topo das mais altas a neve branca contrastava com a aridez do restante da paisagem. Quando faltavam aproximadamente 20 km para Uspallata as nuvens se tornaram negras e vez por outra se ouvia o barulho das trovoadas. Tive que parar para ensacar algumas coisas e para colocar uma capa de chuva, pois pingos grossos começaram a cair. Choveu pouco mas o suficiente para molhar tudo o que não estava protegido.
Quando chegamos nas proximidades da cidade, paramos em um posto de gasolina para tomar suco. O vento já estava relativamente frio se comparado àquele ao qual estávamos acostumados.

A aridez do verdadeiro deserto onde pedalávamos era enigmática. Mesmo às margens do rio Mendoza, apenas pequenos arbustos conseguiam sobreviver. Esse panorama modificou-se quando atravessamos o caudaloso rio por uma ponte metálica e o vale estreito onde pedalávamos foi dando lugar a uma grande região plana cercada por altas montanhas, o Pampa de Tobolango. Algumas construções e o surgimento de vegetação – inclusive grandes árvores – denunciavam a proximidade da nossa próxima escala na viagem pela cordilheira: a cidade de Uspallata.
Chegando na cidade, procuramos o camping mas, ao negociarmos um desconto, acabamos ficando alojados em uma cabana, ao custo de oito pesos por pessoa. Depois de um bom banho quente, fomos a um mercado comprar alimentos. A janta foi composta por salsichão e carne no forno (preparados por Egon), massa (feita pelo Daniel), pão e suco de laranja. Durante a janta percebemos que a comunicação havia mudado um pouco, pois Daniel falava apenas espanhol. Agora tínhamos alguém para nos ajudar na tradução. Preparei café com leite e Fabrice lavou a louça. O diário de viagem foi atualizado. Durante essa tarefa era possível olhar para o mapa geral do roteiro e admirar todo o caminho que já havíamos percorrido. Estávamos finalmente na tão comentada cordilheira, na pequena cidade de Uspallata, a 1751 metros acima do nível do mar. As montanhas nos deixavam maravilhados pela sua beleza. O ar, extremamente limpo, permitia a visualização de grandes extensões. Realmente um cenário magnífico, escolhido inclusive pelo diretor Jean-Jacques Annaud para a realização do filme épico – protagonizado por Brad Pitt – Sete Anos no Tibet. Nesse cenário, no dia seguinte, teríamos oitenta quilômetros de subidas, ultrapassando os três mil metros de altitude em pleno coração da Cordilheira dos Andes...

Thursday, March 01, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo terceiro capítulo




No final de nossa terceira semana de viagem estávamos às portas da Cordilheira dos Andes, entrando na província de Mendoza (Argentina). A aridez do solo, a vegetação espinhenta e a paisagem inóspita nos faziam pensar que não seria muito bom ter problemas naquele lugar, longe de qualquer auxílio.
O dia quente e ensolarado estimulava a pedalada. Chegando na pequena cidade de La Paz, não encontramos nenhum local para pernoitarmos que oferecesse a possibilidade de banho. Resolvemos seguir adiante, pedalando mais 36 quilômetros até a localidade de La Dormida – ao menos o nome era convidativo! Acampamos nas proximidades de um posto de gasolina YPF. Após o banho e a janta, preparada com comida que havíamos comprado ainda em San Luís, a principal tarefa era anotar os principais acontecimentos no diário. Feito isto, resolvi pedalar cerca de um quilômetro até o centro do vilarejo, pois não estava com vontade de dormir (ao contrário dos demais companheiros de viagem, que já ressonavam). Acabei conhecendo uma festa típica local, a “Fiesta de la Cueca Y el Damasco”. Não, não se tratava de nenhuma festa onde as pessoas deveriam comparecer somente com as roupas de baixo. Tratava-se de uma confraternização popular com música e dança típicas. Como uma bicicleta carregada com bagagens não poderia passar despercebida, acabei sofrendo o interrogatório de Nidia, Soledad, Daniela, Flavia, Jorgelina e Laura, estudantes que queriam saber tudo sobre o Brasil e acabaram descobrindo a existência de uma cidade chamada Nova Petrópolis, a mais de dois mil quilômetros dali.

Vigésimo segundo dia (13/01/01 – sábado) – La Dormida a Mendoza

Distância pedalada no dia: 104,72 km.
Distância total acumulada: 2458,08 km.
Tempo pedalado: 3 h 56 min 40 s.
Velocidade média: 26,5 km/h.
Velocidade máxima: 40,0 km/h.

Acordamos já com sol e céu azul, um dia muito bonito. Não havia vento. Tomamos chimarrão, arrumamos o material e comemos alguma coisa (banana, bolachas) para “café da manhã”. Ao saírmos havia uma brisa fraca soprando favoravelmente. Foi aumentando ao longo do dia. A velocidade da viagem foi uma das maiores até agora, pois as condições estavam ideais. Por volta dos 30 km paramos em um posto de gasolina para tomar iogurte e Gatorade. A pedalada continuou em ritmo forte e a paisagem mudou completamente se comparada ao dia anterior. O deserto deu lugar a plantações de duraznos [pêssegos], ciruelas [ameixas], oliveiras, uvas. Havia plantações muito bem organizadas. Paramos em uma tenda para comer melancia e descansar um pouco. O sol estava quente ao abrigo do vento. Continuando viagem, passamos pelo rio Mendoza, com pouca água (e barrenta). Passamos por uma zona industrial feia e com bastante lixo à margem da rodovia. Entrando em Mendoza, porém, fomos refrescados pela sombra das largas ruas arborizadas.
Como relatado no diário, pedalávamos em um típico dia de bom tempo, já sofrendo os efeitos da presença da ainda invisível cordilheira. As nuvens de chuva, barradas pelas montanhas, não chegariam com facilidade àquele local. Como explicar então a presença de uma cidade muito bem arborizada e as plantações de frutas em meio à paisagem desértica? Toda a fartura que encontrávamos se devia unicamente à água de degelo que, canalizada desde as montanhas, servia para irrigar as culturas. Passando por canaletas – chamadas acequias – dentro da cidade, propiciava o crescimento das frondosas árvores que agora nos protegiam com sua sombra.
Mendoza, fundada em 1561, situada a 761 metros acima do nível do mar, ao pé da Cordilheira dos Andes. Com uma população de aproximadamente 880.000 habitantes (a quarta maior cidade da Argentina), destaca-se como um dos centros regionais administrativos e comerciais mais importantes. Se comparada com a aridez do restante do Pampa, poderia ser considerada um oásis com parques, cafés à sombra das árvores nas calçadas, farta gastronomia e deliciosos vinhos. Apesar de seu tamanho, a violência urbana não chega a ser um problema tão grande quanto o risco de se cair em uma canaleta depois de beber um pouco mais do que devia...!
Rapidamente encontramos um serviço de informações turísticas muito bem localizado e com excelente atendimento. Dentre as várias opções que se encaixavam no nosso orçamento restrito, escolhemos o Albergue da Juventude Campo Base. Poucas quadras adiante já nos inscrevíamos e, depois de pagar oito pesos, tratamos de acomodar as bicicletas e todo o equipamento que transportávamos. O albergue estava lotado de viajantes de todo o mundo, a grande maioria indo ou voltando do Monte Aconcágua, a grande atração da região. Mochilas, cordas e equipamento de escalada estavam em toda a parte. Depois de um bom banho fomos passear a pé pelo centro da cidade. Almoçamos “milanesa con papas fritas” e tomamos suco de laranja em um simpático restaurante com mesas na calçada. Deixamos espaço para tomarmos um excelente “helado” (sorvete) e fomos procurar um provedor de internet. Fabrice nos mostrou a página de sua volta ao mundo – tdmfabrice.free.fr – muito bem feita, por sinal. Nem sabíamos, mas em breve também estaríamos nela!
À noite passeamos pela Plaza Independencia, no centro. Havia música, chafariz iluminado, artistas, feira de artesanato e muita gente nas ruas. Caminhamos mais um pouco e tomamos mais um delicioso “helado” antes de voltarmos ao albergue. Enquanto eu atualizava o diário, holandeses, argentinos, ingleses e austríacos conversavam – os sotaques eram os mais diversos! Conversando com um guia de montanha austríaco que havia levado holandeses para escalar o Aconcágua, descobri que a montanha mais alta do mundo fora do Himalaia (Ásia) pode ser realmente fria: 30 graus negativos! O austríaco, acostumado com as montanhas, respondeu olhando para o vazio quando perguntei a respeito: “frio, muito frio...”
O dia seguinte estava reservado para preenchermos as formalidades de ingresso no Parque Provincial Aconcágua. Fomos ao prédio da Subsecretaria de Turismo, preenchemos fichas de inscrição e pagamos a taxa de 20 dólares que nos daria direito a realizar o “trekking corto” de três dias pelo parque. Resolvemos conhecer o Cerro de La Gloria, esperando finalmente enxergarmos a cordilheira. Depois de uma verdadeira odisséia em busca do ônibus certo, chegamos ao tal cerro de injustificada fama. A visita realmente não valeu a pena. Voltando ao centro da cidade, o que salvou o dia foi uma visita ao terraço do prédio da Municipalidad (Prefeitura), onde pudemos ter uma bela visão da cidade e da pré-cordilheira.
À noite jantamos frango assado, queijo e pão, comemorando o fato de que, no dia seguinte, finalmente entraríamos na tão esperada Cordilheira dos Andes!!! Alguns montanhistas do albergue, vendo as bicicletas carregadas, achavam que não conseguiríamos pedalar pela cordilheira – teríamos que empurrar. Nós, ao contrário, apesar de não conhecermos a estrada (nem a subida) e os efeitos da altitude em nosso organismo, acreditávamos em nossa capacidade. No dia seguinte saberíamos...

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo segundo capítulo




Décimo oitavo dia (09/01/01 – terça) – Laboulaye a Vicuña Mackenna

Distância pedalada no dia: 101,97 km.
Distância total acumulada: 1976,06 km.
Tempo pedalado: 4 h 05 min 48 s.
Velocidade média: 24,9 km/h.
Velocidade máxima: 38,0 km/h.

Acampados ao lado de um posto de gasolina, desde o raiar do dia percebemos que o tempo seria chuvoso. Antecipando-nos à chuva, recolhemos todo o material antes de sentirmos os primeiros pingos gelados. Debaixo de um telhado arrumamos o equipamento, ensacando tudo o que não poderia molhar. Enquanto tomávamos café, um raio caiu nas proximidades com um forte estrondo.
Na minha opinião, foi o pior momento em toda a viagem. Pedalar debaixo de chuva e com raios caindo bem próximos é um teste para o sistema nervoso. Para piorar um pouco mais o clima, tive um raio da roda traseira quebrada, o que diminuía sensivelmente o desempenho da bicicleta.
Quando a chuva começou a se dissipar estávamos nas proximidades de General Lavalle. Paramos para almoçar e aproveitei a oportunidade para trocar o raio quebrado. Tive uma surpresa desagradável ao perceber que os raios de reserva que levava não tinham as mesmas dimensões daqueles que estavam nas rodas. Obra de uma oficina de bicicletas bem conhecida em Caxias do Sul, onde dois irmãos se revezam no atendimento. A falta de seriedade na prestação do serviço me obrigou a seguir com uma roda torta em plena viagem no centro da Argentina. O temporal voltou a se formar no horizonte, mas não nos atingiu antes de chegarmos ao nosso objetivo naquele dia, a cidade de Vicuña Mackenna. Fomos a uma oficina de bicicletas, consegui arrumar a roda e comprar raios de reserva – estes sim, de tamanho adequado. Os de Caxias do Sul foram para o lixo.
Aproveitamos a visita à cidade para tomarmos sorvete e, enquanto a chuva dava uma trégua, iniciamos a montagem do acampamento nas proximidades de um posto de gasolina. No horizonte percebemos uma mancha branca se destacando sobre um fundo azul escuro. Logo sentimos a força do temporal, carregado de granizo. Uma enorme pedra de gelo – como nunca havíamos visto, do tamanho de uma bola de tênis – caiu ao lado do acampamento. Passado o temporal, tomamos chimarrão e tratamos de preparar a janta. Uma chuva fraca chegou para ficar e o que nos restou foi o conforto do saco de dormir, esperando que no dia seguinte o tempo melhorasse.

Décimo nono dia (10/01/01 – quarta) – Vicuña Mackenna a Villa Mercedes

Distância pedalada no dia: 118,28 km.
Distância total acumulada: 2094,34 km.
Tempo pedalado: 5 h 45 min 35 s.
Velocidade média: 20,5 km/h.
Velocidade máxima: 34,5 km/h.

Pela manhã o tempo parecia bom, um pouco frio mas com vento contrário. Egon percebeu um raio quebrado e voltamos à oficina de bicicletas da véspera para trocá-lo. Seguindo viagem, enfrentamos um forte vento contrário andando em grupo, desta vez liderado por Fabrice. Durante a pedalada percebemos que estávamos continuamente subindo, pois Fabrice possuía altímetro na bicicleta e confirmou que, nos últimos dois dias, subíramos duzentos e cinqüenta metros. Jacson voltou a pedalar sozinho e ficou para trás, o que nos obrigou a parar para esperá-lo. Egon estava preocupado com a demora, pois algum problema mecânico poderia ter ocorrido. Depois de algum tempo, porém, chegava nosso colega, no mesmo ritmo de sempre. Na cidade seguinte – Justo Daract – paramos para tomar suco e aproveitamos para perguntar o que era uma forte nebulosidade que percebíamos ao longe. Alguns caminhoneiros disseram que se tratava de uma nova tormenta se formando. Ficamos intrigados, pois parecia uma cortina de fumaça. Na realidade nunca saberíamos, pois a tal tormenta não chegou e no dia seguinte a névoa havia desaparecido.
Acampamos em Villa Mercedes. Estávamos bem no centro do mapa do Cone Sul, todos estavam bem, contentes por ter chegado lá com a força das próprias pernas. Mas na Argentina que já havíamos conhecido as pessoas estavam sofrendo com a fúria das tormentas: na grande Buenos Aires, destruição, mortos e feridos.

Vigésimo dia (11/01/01 – quinta) – Villa Mercedes a San Luís

Distância pedalada no dia: 111,13 km.
Distância total acumulada: 2205,48 km.
Tempo pedalado: 5 h 51 min 24 s.
Velocidade média: 19,0 km/h.
Velocidade máxima: 48,0 km/h.

Acordamos com a temperatura bem mais baixa do que na véspera. No diário de viagem encontramos o registro da pedalada:
No início da pedalada tentamos andar em grupo, mas não funcionou. A velocidade era muito baixa, nem chegávamos a vinte por hora. O movimento estava bastante grande e os caminhões ultrapassando ou se cruzando não eram nada agradáveis. Várias vezes tínhamos que sair da pista, já que não havia acostamento para transitar.
Subimos praticamente todo o dia até chegarmos em um local chamado La Cumbre, onde paramos para almoçar. Tomamos um monte de suco e comemos uns sanduíches imensos. Depois do almoço estava bastante quente ao sol, apesar do vento um pouco fresco. Decidimos esperar e descansar, como os argentinos, fazendo uma “siesta”.
Por volta das três horas da tarde seguimos viagem, percebendo as primeiras elevações ao longe. Pedalamos lomba abaixo e paramos em frente a um monumento saudando quem chega a San Luís. Seguimos até um posto YPF, mas não pudemos ficar por lá, pois o chefe do posto havia decidido não mais se responsabilizar pelo que pudesse acontecer com quem pernoitasse por lá. O perigo de roubos era grande.
Um espinho furou o pneu dianteiro da minha bicicleta quando entrávamos em San Luís. Encontramos uma oficina de bicicletas onde foram feitos alguns reparos nas bicicletas. Circulando um pouco pelo centro da cidade, conhecemos a praça central e a igreja, aproveitamos a oportunidade para tomarmos um sorvete e saímos à procura de um local para pernoitar. Nos postos de gasolina não havia lugar – por estarmos dentro da cidade, nem área verde tinham – e na polícia descobrimos que não poderiam autorizar (nem proibir) o acampamento em qualquer lugar. Resumindo, lavavam as mãos. Sem perspectivas de encontrar um local para ficarmos, fizemos compras em um supermercado e saímos em desabalada carreira pela estrada – afinal, estava anoitecendo.
Pedalando noite adentro, fomos nos afastando da cidade, em busca de local para as barracas. Ao lado da estrada avistamos uma pequena casa. Pedimos permissão e acampamos em frente à cerca da propriedade, esperando que ninguém resolvesse levar nossas coisas durante a noite. Após a janta coletiva na barraca-refeitório de Jacson, caímos em sono profundo.

Vigésimo primeiro dia (12/01/01 – sexta) – San Luís a La Dormida

Distância pedalada no dia: 147,87 km.
Distância total acumulada: 2353,36 km.
Tempo pedalado: 6 h 00 min 48 s.
Velocidade média: 24,6 km/h.
Velocidade máxima: 37,5 km/h.

Assim como durante a noite, de manhã ventava bastante. Após o café desmontamos acampamento e seguimos viagem. O forte vento lateral ora ajudava, ora atrapalhava o andamento das bicicletas. Pedalamos por uma incrível reta com 40 quilômetros de extensão!
O relevo e a vegetação começavam a mudar, pois pedalávamos por baixadas e elevações mais pronunciadas e nas laterais da estrada só havia árvores espinhentas. Algumas paisagens lembravam os filmes de velho oeste americanos. Entre os poucos pontos de referência deste trajeto encontramos o rio Desaguadero, onde paramos para tomar suco e descansar. Nesse local havia um posto de controle de fronteira entre as províncias de San Luís e de Mendoza, onde acabávamos de entrar. Finalmente chegávamos às terras próximas da Cordilheira dos Andes: Mendoza, terra do sol e do bom vinho!!!

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo primeiro capítulo




Décimo sexto dia (07/01/01 – domingo) – Chacabuco ao acesso a Diego de Alvear

Distância pedalada no dia: 154,04 km.
Distância total acumulada: 1728,28 km.
Tempo pedalado: 5 h 59 min 57 s.
Velocidade média: 25,7 km/h.
Velocidade máxima: 40,0 km/h.

Na fazenda onde estávamos acampados, nas proximidades de Chacabuco, informaram-nos que a aproximadamente vinte quilômetros dali encontraríamos a próxima Estación de Servicio. Lá poderíamos tomar o nosso café da manhã. Saindo relativamente cedo e com tempo nublado, esperávamos pedalar rapidamente para amainarmos a fome que já se fazia sentir depois da janta da véspera, quando havíamos comido praticamente apenas “siruelas” (ameixas).
No início do dia tomei a dianteira do grupo. Pedalando em ritmo forte, rapidamente havia percorrido 25 km e nada de encontrar a tal estación... Aliás, nada além de campo aberto e alguns capões de mato. Algumas placas anunciavam um Posto YPF, mas a placa que indicava a distância estava encoberta por outra. À medida que avançava, pude perceber o número 2. Pronto – pensei –, só falta estar indicando mais 20 km! Mas era mesmo somente um 2 e logo em seguida eu entrava em um dos postos de gasolina melhor equipados que já encontrei. Grande, limpo, extremamente bem organizado. Uma área de recreação para crianças, banheiros absolutamente impecáveis, um restaurante com tudo o que se poderia imaginar para tomar um belo café da manhã. Nas paredes – inacreditável! – carregadores de baterias de celular esperavam pelos clientes que necessitassem dessa comodidade! Tratei de me lavar para poder entrar (sem afugentar os atendentes) e fui consultar o cardápio. Como havia imposto um ritmo muito forte, teria bastante tempo de espera pelo meu pai e por Jacson, então decidi pedir café com leite e uma pizza. Quando meu pai chegou a pizza de calabresa estava no ponto, pronta para ser devorada. Nunca imagináramos um desjejum tão bom, no meio do nada!
O dia nublado e com uma brisa favorável estava perfeito para pedalarmos. Seguimos juntos em bom ritmo até a entrada da cidade de Junín, onde um ciclista de estrada argentino parou para conversar conosco. Enquanto estávamos parados Egon resolveu comprar bananas e pedalou algumas quadras em direção ao centro da cidade. Nesse momento vimos aparecer, vindo da mesma estrada que seguíamos, um outro ciclista, todo equipado com bagagens. Trocamos as primeiras palavras em inglês e ficamos sabendo que seu nome era Fabrice, era francês e que estava dando a volta ao mundo de bicicleta!!! Convidei-o para encontrarmos meu pai e comermos algumas bananas e lá fomos nós.
Fabrice havia partido de Villepinte, em Paris – França, no dia 10 de setembro de 2000. Passara por Málaga (Espanha), Rabat (Marrocos), Laayoune (Sahara Ocidental), Nouakchott (Mauritânia), Dakar (Senegal) e, após ter tomado um avião da Europa, chegara a Buenos Aires, na Argentina. Seguia de lá para Santiago, no Chile, passando pelas mesmas estradas que nós. Nota: nesse momento, em julho de 2001, já passou pelos seguintes locais (depois de Santiago) em sua volta ao mundo: Wuhan (China), Hanói (Vietnã), Thakeh (Laos), Bangkok (Tailândia), Tashkent (Uzbequistão) e Mashad (Irã). No último contato que mantivemos Fabrice rumava para a Turquia e de lá entraria na Europa, voltando para casa. O endereço eletrônico dessa interessante viagem é tdmfabrice.free.fr
Agora com o grupo formado por quatro ciclistas, seguimos viagem e passamos por Vedia com um tempo excelente, vento pelas costas e velocidade sempre próxima dos 30 quilômetros horários. Durante a pedalada podíamos trocar algumas idéias em inglês ou alemão e conhecer um pouco do mundo visto por Fabrice.
No final da tarde chegamos em um posto de gasolina YPF e, alguns metros adiante, a estrada estava interrompida. Conversando com uma pessoa responsável pela orientação aos motoristas, ficamos sabendo que uma laguna (chamada Laguna Picasa) havia transbordado, inundando a pista e arrancando partes da estrada que formava a Ruta 7. A situação já ocorria há dois anos e provavelmente seria definitiva, pois o aumento do nível das águas se devia ao grande volume de água despejado na região por canais de irrigação. Existiam duas possibilidades: um desvio de 35 quilômetros por estrada de chão e trechos dentro d’água ou um caminho alternativo por estrada asfaltada que aumentaria em 200 quilômetros nosso percurso. Optamos por retornar às proximidades do posto de gasolina, montar acampamento e decidir com calma por onde seguir tomando a sopa do jantar.

Décimo sétimo dia (08/01/01 – segunda) – Acesso a Diego de Alvear a Laboulaye

Distância pedalada no dia: 145,79 km.
Distância total acumulada: 1874,08 km.
Tempo pedalado: 6 h 28 min 14 s.
Velocidade média: 22,6 km/h.
Velocidade máxima: 40,0 km/h.

Acordamos, tomamos café e tratamos de ensacar todo o material, pois decidíramos enfrentar o desvio de 35 quilômetros por estrada de chão e trechos alagados pelo transbordamento da Laguna Picasa. Saímos pedalando e passamos pelo setor responsável pelas informações aos motoristas (que eram recomendados a fazer 200 quilômetros por estradas asfaltadas para desviar da área interrompida), seguindo por mais dez quilômetros de asfalto até encontrarmos a sinalização do desvio. A estrada de chão batido era recoberta por pedras e foi piorando à medida em que avançávamos. Pensei que os finos pneus da minha bicicleta, projetados para rodar somente por asfalto, não fossem agüentar a bicicleta carregada. Foi um duro teste, registrado no diário de viagem:
Passamos por várias áreas alagadas onde Fabrice filmava e em uma delas coloquei a filmadora dele no tripé para filmá-lo passando. Segundo ele, parecia um barco. Era meio estranho pedalar sem saber como estaria o chão um metro à frente.
Quando estávamos aproximadamente na metade do desvio, um forte temporal com descargas elétricas e chuva se abateu sobre nós. Naquela região alagadiça estávamos sem qualquer proteção, expostos à fúria dos elementos da natureza. Entrei na primeira porteira que encontrei, mesmo sob protesto dos demais companheiros de viagem, que queriam prosseguir. Chegando na sede da fazenda Recuerdo, ficamos sob o abrigo de um telhado até que o proprietário chegou para saber o que se passava, de onde vínhamos e para onde íamos, enfim, os questionamentos aos quais já estávamos habituados. O senhor com quem conversávamos afirmou que um raio já havia atingido a antena de seu rádio e queimado vários aparelhos em sua propriedade, de modo que ele igualmente não se sentia muito bem com as tempestades. A chuva e o vento continuaram a aumentar de intensidade e a varanda onde estávamos começou a molhar, de modo que fomos convidados a ir a um galpão mais amplo, que abrigava máquinas e o carro de um empregado. Aproveitando o tempo para conversar, ficamos sabendo que o salário mínimo na Argentina estava cotado em aproximadamente 400 pesos (dólares) e que os funcionários da fazenda recebiam 600 dólares, assistência médica e plano de saúde. Um professor em início de carreira, na Argentina, recebia em torno de 800 dólares se trabalhasse em uma região de difícil acesso (como aquela, por exemplo). Foi mais um momento em que nos perguntamos: o que está acontecendo em nosso país, tão rico e tão imenso?
O temporal começou a passar e, agradecendo pela acolhida, seguimos viagem. Passamos por várias áreas alagadas e pela Laguna Picasa, onde vimos um bando de flamingos ao longe e paramos para uma fotografia. Em alguns lugares estávamos rodeados de água, como se estivéssemos em um arquipélago. A chuva insistente nos obrigou a voltar a pedalar, pois o local não oferecia nenhum tipo de abrigo. Alguns quilômetros mais tarde encontramos novamente a Ruta 7 e o asfalto. Sobrevivemos ao desvio sem qualquer problema mecânico, apesar das condições precárias e das grandes áreas alagadas do desvio. A travessia do trecho alagado pode ser vista na página de Fabrice na internet (endereço já mencionado).
Pedalamos rapidamente pelo asfalto e, ajudados pelo vento, seguimos com velocidade sempre acima de 30 quilômetros por hora pela imensa planície rumo a Rufino, onde paramos em um posto de gasolina para um lanche. Decidimos percorrer mais 65 quilômetros até Laboulaye, onde paramos em um excelente posto da YPF. Acampamos em um bom local, tomamos banho quente e pudemos jantar milanesa con papas fritas e tomar chimarrão, com direito a um helado de sobremesa! Fomos dormir sem imaginar o grande temporal que nos aguardava...