Thursday, March 01, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo primeiro capítulo




Décimo sexto dia (07/01/01 – domingo) – Chacabuco ao acesso a Diego de Alvear

Distância pedalada no dia: 154,04 km.
Distância total acumulada: 1728,28 km.
Tempo pedalado: 5 h 59 min 57 s.
Velocidade média: 25,7 km/h.
Velocidade máxima: 40,0 km/h.

Na fazenda onde estávamos acampados, nas proximidades de Chacabuco, informaram-nos que a aproximadamente vinte quilômetros dali encontraríamos a próxima Estación de Servicio. Lá poderíamos tomar o nosso café da manhã. Saindo relativamente cedo e com tempo nublado, esperávamos pedalar rapidamente para amainarmos a fome que já se fazia sentir depois da janta da véspera, quando havíamos comido praticamente apenas “siruelas” (ameixas).
No início do dia tomei a dianteira do grupo. Pedalando em ritmo forte, rapidamente havia percorrido 25 km e nada de encontrar a tal estación... Aliás, nada além de campo aberto e alguns capões de mato. Algumas placas anunciavam um Posto YPF, mas a placa que indicava a distância estava encoberta por outra. À medida que avançava, pude perceber o número 2. Pronto – pensei –, só falta estar indicando mais 20 km! Mas era mesmo somente um 2 e logo em seguida eu entrava em um dos postos de gasolina melhor equipados que já encontrei. Grande, limpo, extremamente bem organizado. Uma área de recreação para crianças, banheiros absolutamente impecáveis, um restaurante com tudo o que se poderia imaginar para tomar um belo café da manhã. Nas paredes – inacreditável! – carregadores de baterias de celular esperavam pelos clientes que necessitassem dessa comodidade! Tratei de me lavar para poder entrar (sem afugentar os atendentes) e fui consultar o cardápio. Como havia imposto um ritmo muito forte, teria bastante tempo de espera pelo meu pai e por Jacson, então decidi pedir café com leite e uma pizza. Quando meu pai chegou a pizza de calabresa estava no ponto, pronta para ser devorada. Nunca imagináramos um desjejum tão bom, no meio do nada!
O dia nublado e com uma brisa favorável estava perfeito para pedalarmos. Seguimos juntos em bom ritmo até a entrada da cidade de Junín, onde um ciclista de estrada argentino parou para conversar conosco. Enquanto estávamos parados Egon resolveu comprar bananas e pedalou algumas quadras em direção ao centro da cidade. Nesse momento vimos aparecer, vindo da mesma estrada que seguíamos, um outro ciclista, todo equipado com bagagens. Trocamos as primeiras palavras em inglês e ficamos sabendo que seu nome era Fabrice, era francês e que estava dando a volta ao mundo de bicicleta!!! Convidei-o para encontrarmos meu pai e comermos algumas bananas e lá fomos nós.
Fabrice havia partido de Villepinte, em Paris – França, no dia 10 de setembro de 2000. Passara por Málaga (Espanha), Rabat (Marrocos), Laayoune (Sahara Ocidental), Nouakchott (Mauritânia), Dakar (Senegal) e, após ter tomado um avião da Europa, chegara a Buenos Aires, na Argentina. Seguia de lá para Santiago, no Chile, passando pelas mesmas estradas que nós. Nota: nesse momento, em julho de 2001, já passou pelos seguintes locais (depois de Santiago) em sua volta ao mundo: Wuhan (China), Hanói (Vietnã), Thakeh (Laos), Bangkok (Tailândia), Tashkent (Uzbequistão) e Mashad (Irã). No último contato que mantivemos Fabrice rumava para a Turquia e de lá entraria na Europa, voltando para casa. O endereço eletrônico dessa interessante viagem é tdmfabrice.free.fr
Agora com o grupo formado por quatro ciclistas, seguimos viagem e passamos por Vedia com um tempo excelente, vento pelas costas e velocidade sempre próxima dos 30 quilômetros horários. Durante a pedalada podíamos trocar algumas idéias em inglês ou alemão e conhecer um pouco do mundo visto por Fabrice.
No final da tarde chegamos em um posto de gasolina YPF e, alguns metros adiante, a estrada estava interrompida. Conversando com uma pessoa responsável pela orientação aos motoristas, ficamos sabendo que uma laguna (chamada Laguna Picasa) havia transbordado, inundando a pista e arrancando partes da estrada que formava a Ruta 7. A situação já ocorria há dois anos e provavelmente seria definitiva, pois o aumento do nível das águas se devia ao grande volume de água despejado na região por canais de irrigação. Existiam duas possibilidades: um desvio de 35 quilômetros por estrada de chão e trechos dentro d’água ou um caminho alternativo por estrada asfaltada que aumentaria em 200 quilômetros nosso percurso. Optamos por retornar às proximidades do posto de gasolina, montar acampamento e decidir com calma por onde seguir tomando a sopa do jantar.

Décimo sétimo dia (08/01/01 – segunda) – Acesso a Diego de Alvear a Laboulaye

Distância pedalada no dia: 145,79 km.
Distância total acumulada: 1874,08 km.
Tempo pedalado: 6 h 28 min 14 s.
Velocidade média: 22,6 km/h.
Velocidade máxima: 40,0 km/h.

Acordamos, tomamos café e tratamos de ensacar todo o material, pois decidíramos enfrentar o desvio de 35 quilômetros por estrada de chão e trechos alagados pelo transbordamento da Laguna Picasa. Saímos pedalando e passamos pelo setor responsável pelas informações aos motoristas (que eram recomendados a fazer 200 quilômetros por estradas asfaltadas para desviar da área interrompida), seguindo por mais dez quilômetros de asfalto até encontrarmos a sinalização do desvio. A estrada de chão batido era recoberta por pedras e foi piorando à medida em que avançávamos. Pensei que os finos pneus da minha bicicleta, projetados para rodar somente por asfalto, não fossem agüentar a bicicleta carregada. Foi um duro teste, registrado no diário de viagem:
Passamos por várias áreas alagadas onde Fabrice filmava e em uma delas coloquei a filmadora dele no tripé para filmá-lo passando. Segundo ele, parecia um barco. Era meio estranho pedalar sem saber como estaria o chão um metro à frente.
Quando estávamos aproximadamente na metade do desvio, um forte temporal com descargas elétricas e chuva se abateu sobre nós. Naquela região alagadiça estávamos sem qualquer proteção, expostos à fúria dos elementos da natureza. Entrei na primeira porteira que encontrei, mesmo sob protesto dos demais companheiros de viagem, que queriam prosseguir. Chegando na sede da fazenda Recuerdo, ficamos sob o abrigo de um telhado até que o proprietário chegou para saber o que se passava, de onde vínhamos e para onde íamos, enfim, os questionamentos aos quais já estávamos habituados. O senhor com quem conversávamos afirmou que um raio já havia atingido a antena de seu rádio e queimado vários aparelhos em sua propriedade, de modo que ele igualmente não se sentia muito bem com as tempestades. A chuva e o vento continuaram a aumentar de intensidade e a varanda onde estávamos começou a molhar, de modo que fomos convidados a ir a um galpão mais amplo, que abrigava máquinas e o carro de um empregado. Aproveitando o tempo para conversar, ficamos sabendo que o salário mínimo na Argentina estava cotado em aproximadamente 400 pesos (dólares) e que os funcionários da fazenda recebiam 600 dólares, assistência médica e plano de saúde. Um professor em início de carreira, na Argentina, recebia em torno de 800 dólares se trabalhasse em uma região de difícil acesso (como aquela, por exemplo). Foi mais um momento em que nos perguntamos: o que está acontecendo em nosso país, tão rico e tão imenso?
O temporal começou a passar e, agradecendo pela acolhida, seguimos viagem. Passamos por várias áreas alagadas e pela Laguna Picasa, onde vimos um bando de flamingos ao longe e paramos para uma fotografia. Em alguns lugares estávamos rodeados de água, como se estivéssemos em um arquipélago. A chuva insistente nos obrigou a voltar a pedalar, pois o local não oferecia nenhum tipo de abrigo. Alguns quilômetros mais tarde encontramos novamente a Ruta 7 e o asfalto. Sobrevivemos ao desvio sem qualquer problema mecânico, apesar das condições precárias e das grandes áreas alagadas do desvio. A travessia do trecho alagado pode ser vista na página de Fabrice na internet (endereço já mencionado).
Pedalamos rapidamente pelo asfalto e, ajudados pelo vento, seguimos com velocidade sempre acima de 30 quilômetros por hora pela imensa planície rumo a Rufino, onde paramos em um posto de gasolina para um lanche. Decidimos percorrer mais 65 quilômetros até Laboulaye, onde paramos em um excelente posto da YPF. Acampamos em um bom local, tomamos banho quente e pudemos jantar milanesa con papas fritas e tomar chimarrão, com direito a um helado de sobremesa! Fomos dormir sem imaginar o grande temporal que nos aguardava...

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