Saturday, March 31, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo oitavo capítulo




Era a última tarde em que estávamos no Parque Aconcágua, desfrutando o cenário belíssimo do Vale Horcones entre majestosas montanhas. Depois de retornarmos da caminhada a Confluencia (3320 metros de altitude) tratamos de preparar a janta: massa e chá. Pouco tempo depois nossos companheiros de viagem – Fabrice e Jacson – também chegavam. A noite havia sido bastante fria em Confluencia, inclusive com alguns flocos de neve misturados com chuva gelada. Jantamos novamente e tomamos café com leite. No dia seguinte voltaríamos a pedalar.

Vigésimo oitavo dia (19/01/01 – sexta) – Parque Aconcagua a Los Andes

Distância pedalada no dia: 81,18 km.
Distância total acumulada: 2741,39 km.
Tempo pedalado: 4 h 17 min 09 s.
Velocidade média: 18,9 km/h.
Velocidade máxima: 58,0 km/h.

Conforme o registro no diário não foi uma noite bem dormida. Por volta das quatro horas da manhã levantei para “ir ao banheiro” e percebi que o céu estava completamente encoberto por nuvens baixas. Só podia perceber o contorno das montanhas mais próximas. Voltei para a barraca desejando que não chovesse.
Acordamos com tempo parcialmente nublado e, tomando café com leite e comendo pão, tratamos de arrumar todo o material nos alforjes das bicicletas. Quando nos preparávamos para a última fotografia antes de colocarmos o pé na estrada, chegaram dois suíços, também de bicicleta. Fabrice conversou em francês com os dois, contando que eles também chegavam para conhecer o belo Parque Aconcagua.
Descemos pela estrada de terra de acesso ao parque e, chegando ao asfalto da Ruta 7, começamos a subir. Estava bastante frio, mas felizmente ainda sem o forte vento. Passamos por um túnel curto e logo em seguida chegamos a Las Cuevas um pequeno vilarejo a 3112 metros de altitude com vários prédios construídos com pedras. Logo em seguida teríamos que passar pelo túnel do Paso Sistema Cristo Redentor, onde temíamos não poder pedalar.
Ao lado da estrada freqüentemente observávamos postes pintados com faixas vermelhas e amarelas e com pequenas placas nas alturas de 1, 2, 3 e 4 metros. Como varas de medição, indicam a altura da capa de neve que cobre a estrada no inverno e sinalizam o caminho para a máquina de limpeza que desobstrui a pista.
Um grande pelotão argentino de ciclistas de estrada chegou logo em seguida, com carro e ônibus de apoio. Ficamos sabendo que eles também pretendiam atravessar a fronteira para o Chile. Esperamos e, para nosso espanto, eles seguiriam no ônibus, tendo as bicicletas carregadas em um reboque. Apesar da travessia de bicicleta ser proibida – como ficamos sabendo, pelo perigo da exposição aos gases dos veículos no interior do túnel –, não pretendíamos fazer o mesmo, pois havíamos atravessado toda a Argentina pedalando. Conversando com policiais da Aduana Argentina, conseguimos uma escolta pelo túnel Caracoles, o antigo túnel por onde passava a estrada de ferro transandina. Atualmente este túnel, paralelo ao novo túnel por onde passa a rodovia, serve como acesso de emergência e alternativa para o transporte de cargas perigosas.
Escoltados por um policial montado em um quadriciclo, seguimos em direção à entrada. O policial, além de nos dar segurança, seguiria para iluminar nosso caminho, já que o túnel, com três mil e novecentos metros de extensão, era completamente escuro. Seguindo pela escuridão, pedalávamos pensando que a próxima visão que teríamos da Cordilheira dos Andes já pertenceria ao Chile. Em alguns lugares percebíamos trechos recobertos com concreto; em outros, a fria rocha nua nos lembrava que estávamos a 3185 metros de altitude, atravessando por dentro das montanhas no Coração dos Andes!!!
Percebendo a fraca luz da saída do túnel ao longe, nossa escolta acelerou e nos deixou para trás. Pudemos apreciar os últimos metros de pedalada naquele local inusitado ouvindo somente o ruído dos pneus rodando no pavimento onde outrora passava o trem transandino. Ao voltarmos para a bem-vinda luz solar, chegávamos ao território chileno!!! Fomos bem recebidos por um funcionário que nos forneceu as indicações do que encontraríamos logo adiante. Passamos pelas ruínas de uma antiga estação de trem e pudemos ver os antigos trilhos desse sistema férreo que é muito bem descrito no guia Turistel: “A linha férrea acompanha a estrada. Tem vários túneis e coberturas, construídos como proteção para as avalanches de pedra e neve. [...] Esta grande obra de engenharia foi inaugurada em 5 de abril de 1910, sob a direção dos americanos Juan e Mateo Clark. Originalmente as locomotivas eram propulsadas a carvão; a eletrificação ocorreu na década de 1940. As locomotivas elétricas de alta montanha possuíam certas características especiais: eram articuladas no meio para permitir os estreitos giros do traçado ferroviário; tinham um grande trilho dianteiro para limpar a neve; levavam depósitos de areia que era jogada sobre os trilhos cobertos de gelo para conseguir melhor atrito das rodas e, no centro, tinham uma roda dentada extra que corria sobre a cremallera. Esta última era uma espécie de trilho de aço dentado que permitia a subida nas pendentes pronunciadas. Isto pode ser visto em Portillo e na Aduana Los Libertadores”.
Imaginávamos que, depois de subir a cordilheira, naquele momento simplesmente poderíamos descer. Mas não foi bem assim. Apesar do grande declive, precisávamos pedalar contra o forte vento montanha acima. A belíssima paisagem, no entanto, compensava qualquer esforço. Em pouco tempo chegávamos ao Complejo Fronterizo Los Libertadores, onde quatro organismos estão reunidos para fiscalizar a entrada e saída: Carabineros de Chile, Policía Internacional, Servicios de Aduanas e Servicio Agrícola y Ganadero. Além de mostrarmos nossa documentação de entrada e saída da Argentina, tivemos que abrir os alforjes das bicicletas para que um fiscal examinasse o conteúdo, pois alimentos perecíveis não poderiam ser levados.
Seguindo viagem, pedalamos mais um pouco até chegarmos ao famoso Hotel Portillo, às margens das águas incrivelmente verde-azuladas da Laguna del Inca, um belíssimo reservatório natural formado pela ação de um glaciar que, depositando sedimentos ao longo do tempo, formou um lago espremido entre as montanhas – entre elas, os Nevados Tres Hermanos, que emolduram a paisagem por trás da laguna. No inverno as águas congelam e é possível optar entre esquiar ou tomar um banho ao ar livre na piscina aquecida do hotel, bem ao lado da neve.
Voltando a pedalar, passamos por uma placa que alertava: maxima precaucion – curvas cerradas sucesivas. Chegávamos à região conhecida – e, note-se, bem denominada – como Los Caracoles. A estrada seguia serpenteando pelo único local possível entre as montanhas. Curva após curva, avançávamos maravilhados com a paisagem quando, em meio à aridez das pedras e do pó, encontramos uma ponte de gelo sobre as águas do rio que seguia vale abaixo. Para confirmar, desci por uma encosta de cascalhos soltos que quase causou um acidente e fui ver de perto a ponte. Era realmente gelo, milhões de grãos compactados que resistiam ao sol de verão e às águas turbulentas do rio.
Sempre descendo, lentamente vimos a paisagem se modificar ao longo do dia: a paisagem árida começou a ser substituída por alguns tufos esparsos de capim; pouco adiante apareciam os primeiros arbustos e, mais ao longe, frondosas árvores. Passamos pelo Salto del Soldado, onde uma enorme massa granítica foi esculpida pelas águas do rio, formando uma estreita garganta bem ao lado da estrada. Nesse local um soldado, fugindo de seus terríveis perseguidores, teria se jogado penhasco abaixo, mergulhando nas águas revoltas.
O final da tarde se aproximava e precisávamos encontrar um local para acamparmos. Na entrada da cidade de Los Andes (820 metros de altitude), fundada em 1791 e atualmente com 55000 habitantes, encontramos um camping com restaurante e banheiros. No dia seguinte nosso amigo Fabrice pretendia seguir diretamente para Santiago, pois precisava agilizar a documentação e conseguir o visto de ingresso na China para mais uma etapa de sua viagem de volta ao mundo. Nós seguiríamos primeiro para Viña del Mar e Valparaíso, pois pretendíamos alcançar o Oceano Pacífico. À noite o jantar foi caprichado e brindamos com vinho o fato de estarmos realizando os nossos sonhos. Fabrice nos mostrou, através da tela de cristal líquido da filmadora, alguns lugares por onde havia passado. Pudemos recordar o desvio alagado onde as bicicletas seguiram por dentro d’água, a travessia da Argentina, com suas imensas retas, a Cordilheira dos Andes, com suas fantásticas montanhas...

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