Décimo segundo dia (03/01/01 – quarta) – Do Acampamento da Ponte a Colonia
Distância pedalada no dia: 102,56 km.
Distância total acumulada: 1319,92 km.
Tempo pedalado: 4 h 39 min 51 s.
Velocidade média: 22,0 km/h.
Velocidade máxima: 52,0 km/h.
Acordamos cedo e assistimos ao nascer do sol avermelhado que anunciava mais um dia quente no Uruguai. Estávamos a aproximadamente 100 quilômetros de Colonia del Sacramento – a nossa porta de saída do país pelo Rio da Prata – e já bem mais próximos de Buenos Aires, nosso local de ingresso na Argentina. Na noite anterior acampáramos sob uma ponte, às margens de um sujo curso d’água; um pedaço da estrutura ameaçava cair sobre nosso acampamento – o que felizmente não ocorreu. Tomamos um breve café e colocamos o pé na estrada pouco depois das sete horas da manhã.
Nesses dias mais quentes sempre parávamos com mais freqüência para tomar água, suco, refrigerante ou iogurte (apreciando com muito gosto os sucos e produtos lácteos de excelente qualidade do Uruguai). Uma alteração que nos chamou a atenção nesse dia de pedalada foi a mudança no tipo de pavimentação da estrada. O asfalto, sempre relativamente bom até então, dava lugar ao concreto. Por causa da dilatação a rodovia fora construída com placas e, entre uma e outra, sempre havia um vão. Para os automóveis não chegava a se tornar um empecilho, pois a suspensão absorvia o pequeno choque, mas bicicletas carregadas para viagem sofriam a cada pancada do pneu contra a quina da placa seguinte.
Ao longo da estrada, propriedades agrícolas com pastagens bem verdes e grandes montes de feno de forma cilíndrica indicavam que esta região do Uruguai presta-se e é aproveitada para o desenvolvimento da agricultura. De vez em quando, campos amarelos de pura flor alegravam nossas vistas. Já nas proximidades de Colonia, uma grande extensão de estrada era ladeada por palmeiras, tornando-a interessante e agradável pela sombra que produziam. Na entrada da cidade eucaliptos imensos formavam um grande túnel verde, apreciado tanto pelos enormes bandos de caturritas quanto por nós, ciclistas viajantes, que paramos à sombra para descansar. Nesses momentos de parada sempre podíamos comentar nossas impressões acerca da região e algumas delas ficaram registradas no diário de viagem:
Como observação geral, vale a pena comentar algumas observações referentes ao Uruguay. Percebemos que há muitos carros velhos circulando pelas rodovias, além de pequenas motos tipo Scooter. Muitas parece que não vão agüentar o peso a que são submetidas, muitas vezes com duas pessoas pesadas e com mochilas! Também observamos várias casas com telhados construídos de capim – muito bonitas!
Com relação às estradas, a sinalização é excelente. Quando se está entrando em uma via maior, sempre se encontra uma placa dizendo “ceda el paso”, ou seja, pedindo para deixar passagem livre para os outros. E parece que funciona muito bem. Também passamos por muitas pontes estreitas, onde as duas vias se estrangulam. Uma delas (geralmente aquela que serve de acesso à cidade mais próxima) tem a preferência sobre a outra, mas em ambos os lados vê-se a placa “puente angosto” (ponte estreita). Nas auto-estradas há uma grande área de escape, geralmente gramada e bem cuidada.
De volta à estrada, chegamos em Colonia del Sacramento e fomos diretamente para o Camping Municipal, nas proximidades do rio. Não poderia ser comparado em qualidade com outros onde já estivéramos, como os excelentes Campig Santa Teresa ou Camping San Rafael, mas com absoluta certeza seria bem melhor do que o último acampamento, debaixo de uma ponte. Fizemos o registro de entrada, montamos o acampamento e decidimos que faríamos coisas diferentes: enquanto Egon e Jacson sairiam para procurar uma oficina de bicicletas, resolvendo alguns problemas mecânicos antes da entrada em território argentino, eu aproveitaria para tomar banho e me barbear, lavar minha roupa suja e colocar os registros de viagem em dia. Feito isso, pedalei sem carga (estranhando um pouco o comportamento da bicicleta sem peso) para o centro de Colonia, troquei dólares, enviei correspondência (juntamente com mapas, folders e material de consulta que não seria mais utilizado) para casa e tomei um ótimo sorvete. Aproveitei o final de tarde para passear e conhecer a interessante parte antiga de Colonia del Sacramento.
Bastante próxima da entrada dos grandes rios Paraná e Uruguai, a região de Colonia sempre foi vista como excelente ponto estratégico geográfico e político. Os hábeis portugueses bem o sabiam quando, em 1680, enviaram uma expedição sob as ordens de Dom Pedro com o objetivo de fundar uma cidade portuguesa nos domínios espanhóis, bem próxima do rio e às portas do mar. Chegaram então na região os homens comandados por Don Manuel de Lobo, que certamente nunca sonhava que aquele pequeno povoado persistiria no tempo e na história, servindo como memória viva a visitantes como nós. Atualmente a cidade antiga é declarada pela Unesco Patrimônio da Humanidade. Está incluída na lista de tesouros culturais e arquitetônicos que os seres humanos de nosso pequeno planeta devem proteger com todo o zelo.
Passeando pelas velhas pedras do antigo calçamento pude observar a grande quantidade de prédios que resistiram ao tempo e foram posteriormente recuperados. A Puerta de Campo foi construída em 1745 e dava acesso à cidade, protegida por um alto muro que até hoje abriga os antigos canhões. Várias praças podem ser visitadas e talvez a mais interessante tenha sido construída utilizando-se as fundações de uma casa. É possível passear e, lendo as placas indicativas, imaginar como seria a vida das pessoas que habitavam a casa. Bem próximo dali encontra-se o farol, construído mais de um século depois, em 1857. Interessante observar que a base do farol está sobre fundações de um antigo convento que, datado de 1696, é possivelmente a ruína mais antiga do Uruguai. Seguindo pelas ruelas, já estava na hora de voltar. Antes aproveitei para conhecer a Iglesia Matriz, a mais antiga do país, mostrando consigo o testemunho de diversos períodos da história de Colonia del Sacramento.
Nas proximidades desse bairro histórico visitei o Iate Clube e o porto, onde precisava obter informações sobre o transporte através do Rio da Prata para Buenos Aires. Três tipos de embarcação realizam a travessia: lanchas, ferry-boat e os ultra-rápidos catamarãs (cuja viagem dura apenas 45 minutos – com preço, obviamente, compatível). Para o nosso orçamento, sempre apertado, teríamos duas opções de horário: quinze para as sete da noite e quatro horas da manhã. Teríamos que nos reuni para decidir: ficar em Colonia por mais um dia ou acordar de madrugada.
Voltando ao camping, fotografei o rio ao entardecer e pude enxergar os enormes edifícios de Buenos Aires a mais de 40 quilômetros dali com o auxílio da máquina fotográfica. Em nosso acampamento decidimos que faríamos uma tentativa para tomar o barco das quatro horas da manhã. Para isso teríamos que acordar por volta das duas horas, desmontar acampamento no escuro, guardar tudo e pedalar até o porto, comprar as passagens (21 dólares por pessoa) e passar pela alfândega. Resumindo, precisaríamos de eficiência, organização e força de vontade para aproveitarmos o tempo.
O passeio por Colonia ficou assim registrado no ciclocomputador:
Distância pedalada na cidade: 15,14 km.
Distância total acumulada: 1335,06 km.
Tempo pedalado: 1 h 36 min 34 s.
Velocidade média: 9,3 km/h.
Velocidade máxima: 31,0 km/h.
Antes de descansar havia ainda a tarefa de relatar no diário os últimos acontecimentos em território uruguaio, para que não houvesse atraso na atualização das referências de viagem. Era interessante anotar logo os detalhes, visto que eles facilmente se perderiam depois de poucos dias na estrada, pois a quantidade de informações novas é bastante grande. Isso era claramente perceptível quando avaliávamos a evolução na capacidade de comunicação, pois quando entráramos no Uruguai nosso vocabulário se resumia a poucas palavras; em Colonia, por outro lado, já conseguíamos manter uma conversação razoável. Restava a expectativa para conhecermos o espanhol dos argentinos. Em poucas horas, depois da travessia do Rio da Prata, saberíamos.
Acordamos por volta das duas horas e quinze da madrugada. Desmontamos o acampamento, arrumamos todo o material e guardamos tudo nos alforjes. Nas proximidades do camping muitos uruguaios ainda preparavam parrilladas (o churrasco para os castelhanos) nos diversos locais disponíveis à beira do rio. Pedalamos por ruas desertas até o centro da cidade e de lá até a zona portuária, chegando ao Terminal Buquebus. Meu pai permaneceu com as bicicletas enquanto Jacson e eu sumíamos em meio à multidão de pessoas que esperavam a hora da partida. Compramos os bilhetes e voltamos para buscar as bicicletas e levá-las à imigração, um pouco nervosos com o horário apertado. Faltavam apenas dez minutos para a partida e, se tivéssemos que abrir todos os compartimentos dos alforjes, perderíamos a saída. Mas tudo deu certo e, com a documentação em dia, entramos no navio pelo acesso dos carros e acomodamos as bicicletas. Subindo vários andares, chegamos ao deck aberto e tratamos de instalar cadeiras em local favorável para aproveitarmos a travessia. Sentados na popa da embarcação, vimos os contornos da costa lentamente se tornarem indistintos, até que só restasse água ao nosso redor. Para trás ficava um país que apenas começáramos a conhecer, mas que já nos cativara pela amizade de sua gente; para a frente, um país de grandes dimensões e contrastes, que haveríamos de cruzar de leste a oeste, rumo à Cordilheira dos Andes e ao Pacífico.