Wednesday, January 24, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - oitavo capítulo


Décimo segundo dia (03/01/01 – quarta) – Do Acampamento da Ponte a Colonia

Distância pedalada no dia: 102,56 km.
Distância total acumulada: 1319,92 km.
Tempo pedalado: 4 h 39 min 51 s.
Velocidade média: 22,0 km/h.
Velocidade máxima: 52,0 km/h.

Acordamos cedo e assistimos ao nascer do sol avermelhado que anunciava mais um dia quente no Uruguai. Estávamos a aproximadamente 100 quilômetros de Colonia del Sacramento – a nossa porta de saída do país pelo Rio da Prata – e já bem mais próximos de Buenos Aires, nosso local de ingresso na Argentina. Na noite anterior acampáramos sob uma ponte, às margens de um sujo curso d’água; um pedaço da estrutura ameaçava cair sobre nosso acampamento – o que felizmente não ocorreu. Tomamos um breve café e colocamos o pé na estrada pouco depois das sete horas da manhã.
Nesses dias mais quentes sempre parávamos com mais freqüência para tomar água, suco, refrigerante ou iogurte (apreciando com muito gosto os sucos e produtos lácteos de excelente qualidade do Uruguai). Uma alteração que nos chamou a atenção nesse dia de pedalada foi a mudança no tipo de pavimentação da estrada. O asfalto, sempre relativamente bom até então, dava lugar ao concreto. Por causa da dilatação a rodovia fora construída com placas e, entre uma e outra, sempre havia um vão. Para os automóveis não chegava a se tornar um empecilho, pois a suspensão absorvia o pequeno choque, mas bicicletas carregadas para viagem sofriam a cada pancada do pneu contra a quina da placa seguinte.
Ao longo da estrada, propriedades agrícolas com pastagens bem verdes e grandes montes de feno de forma cilíndrica indicavam que esta região do Uruguai presta-se e é aproveitada para o desenvolvimento da agricultura. De vez em quando, campos amarelos de pura flor alegravam nossas vistas. Já nas proximidades de Colonia, uma grande extensão de estrada era ladeada por palmeiras, tornando-a interessante e agradável pela sombra que produziam. Na entrada da cidade eucaliptos imensos formavam um grande túnel verde, apreciado tanto pelos enormes bandos de caturritas quanto por nós, ciclistas viajantes, que paramos à sombra para descansar. Nesses momentos de parada sempre podíamos comentar nossas impressões acerca da região e algumas delas ficaram registradas no diário de viagem:
Como observação geral, vale a pena comentar algumas observações referentes ao Uruguay. Percebemos que há muitos carros velhos circulando pelas rodovias, além de pequenas motos tipo Scooter. Muitas parece que não vão agüentar o peso a que são submetidas, muitas vezes com duas pessoas pesadas e com mochilas! Também observamos várias casas com telhados construídos de capim – muito bonitas!
Com relação às estradas, a sinalização é excelente. Quando se está entrando em uma via maior, sempre se encontra uma placa dizendo “ceda el paso”, ou seja, pedindo para deixar passagem livre para os outros. E parece que funciona muito bem. Também passamos por muitas pontes estreitas, onde as duas vias se estrangulam. Uma delas (geralmente aquela que serve de acesso à cidade mais próxima) tem a preferência sobre a outra, mas em ambos os lados vê-se a placa “puente angosto” (ponte estreita). Nas auto-estradas há uma grande área de escape, geralmente gramada e bem cuidada.
De volta à estrada, chegamos em Colonia del Sacramento e fomos diretamente para o Camping Municipal, nas proximidades do rio. Não poderia ser comparado em qualidade com outros onde já estivéramos, como os excelentes Campig Santa Teresa ou Camping San Rafael, mas com absoluta certeza seria bem melhor do que o último acampamento, debaixo de uma ponte. Fizemos o registro de entrada, montamos o acampamento e decidimos que faríamos coisas diferentes: enquanto Egon e Jacson sairiam para procurar uma oficina de bicicletas, resolvendo alguns problemas mecânicos antes da entrada em território argentino, eu aproveitaria para tomar banho e me barbear, lavar minha roupa suja e colocar os registros de viagem em dia. Feito isso, pedalei sem carga (estranhando um pouco o comportamento da bicicleta sem peso) para o centro de Colonia, troquei dólares, enviei correspondência (juntamente com mapas, folders e material de consulta que não seria mais utilizado) para casa e tomei um ótimo sorvete. Aproveitei o final de tarde para passear e conhecer a interessante parte antiga de Colonia del Sacramento.
Bastante próxima da entrada dos grandes rios Paraná e Uruguai, a região de Colonia sempre foi vista como excelente ponto estratégico geográfico e político. Os hábeis portugueses bem o sabiam quando, em 1680, enviaram uma expedição sob as ordens de Dom Pedro com o objetivo de fundar uma cidade portuguesa nos domínios espanhóis, bem próxima do rio e às portas do mar. Chegaram então na região os homens comandados por Don Manuel de Lobo, que certamente nunca sonhava que aquele pequeno povoado persistiria no tempo e na história, servindo como memória viva a visitantes como nós. Atualmente a cidade antiga é declarada pela Unesco Patrimônio da Humanidade. Está incluída na lista de tesouros culturais e arquitetônicos que os seres humanos de nosso pequeno planeta devem proteger com todo o zelo.
Passeando pelas velhas pedras do antigo calçamento pude observar a grande quantidade de prédios que resistiram ao tempo e foram posteriormente recuperados. A Puerta de Campo foi construída em 1745 e dava acesso à cidade, protegida por um alto muro que até hoje abriga os antigos canhões. Várias praças podem ser visitadas e talvez a mais interessante tenha sido construída utilizando-se as fundações de uma casa. É possível passear e, lendo as placas indicativas, imaginar como seria a vida das pessoas que habitavam a casa. Bem próximo dali encontra-se o farol, construído mais de um século depois, em 1857. Interessante observar que a base do farol está sobre fundações de um antigo convento que, datado de 1696, é possivelmente a ruína mais antiga do Uruguai. Seguindo pelas ruelas, já estava na hora de voltar. Antes aproveitei para conhecer a Iglesia Matriz, a mais antiga do país, mostrando consigo o testemunho de diversos períodos da história de Colonia del Sacramento.
Nas proximidades desse bairro histórico visitei o Iate Clube e o porto, onde precisava obter informações sobre o transporte através do Rio da Prata para Buenos Aires. Três tipos de embarcação realizam a travessia: lanchas, ferry-boat e os ultra-rápidos catamarãs (cuja viagem dura apenas 45 minutos – com preço, obviamente, compatível). Para o nosso orçamento, sempre apertado, teríamos duas opções de horário: quinze para as sete da noite e quatro horas da manhã. Teríamos que nos reuni para decidir: ficar em Colonia por mais um dia ou acordar de madrugada.
Voltando ao camping, fotografei o rio ao entardecer e pude enxergar os enormes edifícios de Buenos Aires a mais de 40 quilômetros dali com o auxílio da máquina fotográfica. Em nosso acampamento decidimos que faríamos uma tentativa para tomar o barco das quatro horas da manhã. Para isso teríamos que acordar por volta das duas horas, desmontar acampamento no escuro, guardar tudo e pedalar até o porto, comprar as passagens (21 dólares por pessoa) e passar pela alfândega. Resumindo, precisaríamos de eficiência, organização e força de vontade para aproveitarmos o tempo.
O passeio por Colonia ficou assim registrado no ciclocomputador:


Distância pedalada na cidade: 15,14 km.
Distância total acumulada: 1335,06 km.
Tempo pedalado: 1 h 36 min 34 s.
Velocidade média: 9,3 km/h.
Velocidade máxima: 31,0 km/h.

Antes de descansar havia ainda a tarefa de relatar no diário os últimos acontecimentos em território uruguaio, para que não houvesse atraso na atualização das referências de viagem. Era interessante anotar logo os detalhes, visto que eles facilmente se perderiam depois de poucos dias na estrada, pois a quantidade de informações novas é bastante grande. Isso era claramente perceptível quando avaliávamos a evolução na capacidade de comunicação, pois quando entráramos no Uruguai nosso vocabulário se resumia a poucas palavras; em Colonia, por outro lado, já conseguíamos manter uma conversação razoável. Restava a expectativa para conhecermos o espanhol dos argentinos. Em poucas horas, depois da travessia do Rio da Prata, saberíamos.
Acordamos por volta das duas horas e quinze da madrugada. Desmontamos o acampamento, arrumamos todo o material e guardamos tudo nos alforjes. Nas proximidades do camping muitos uruguaios ainda preparavam parrilladas (o churrasco para os castelhanos) nos diversos locais disponíveis à beira do rio. Pedalamos por ruas desertas até o centro da cidade e de lá até a zona portuária, chegando ao Terminal Buquebus. Meu pai permaneceu com as bicicletas enquanto Jacson e eu sumíamos em meio à multidão de pessoas que esperavam a hora da partida. Compramos os bilhetes e voltamos para buscar as bicicletas e levá-las à imigração, um pouco nervosos com o horário apertado. Faltavam apenas dez minutos para a partida e, se tivéssemos que abrir todos os compartimentos dos alforjes, perderíamos a saída. Mas tudo deu certo e, com a documentação em dia, entramos no navio pelo acesso dos carros e acomodamos as bicicletas. Subindo vários andares, chegamos ao deck aberto e tratamos de instalar cadeiras em local favorável para aproveitarmos a travessia. Sentados na popa da embarcação, vimos os contornos da costa lentamente se tornarem indistintos, até que só restasse água ao nosso redor. Para trás ficava um país que apenas começáramos a conhecer, mas que já nos cativara pela amizade de sua gente; para a frente, um país de grandes dimensões e contrastes, que haveríamos de cruzar de leste a oeste, rumo à Cordilheira dos Andes e ao Pacífico.

Saturday, January 13, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - sétimo capítulo


Décimo dia (01/01/01 – segunda) – Piriápolis a Montevideo

Distância pedalada no dia: 111,17 km.
Distância total acumulada: 1129,63 km.
Tempo pedalado: 5 h 36 min 40 s.
Velocidade média: 19,7 km/h.
Velocidade máxima: 37,0 km/h.

No primeiro dia do ano 2001 saímos do Camping El Toro de Piriápolis por volta das 8 h e 40 min, passando pelo centro da cidade à procura de uma oficina para fazer um pequeno reparo nas bicicletas. Como era esperado, não encontramos nenhum estabelecimento aberto nessa sonolenta manhã e seguimos costeando o litoral do Rio-Mar da Prata até o Balneario Solis, quando então deixamos de avistar a costa para seguirmos pela Ruta Interbalnearia. O dia estava bastante quente já pela manhã, com algum vento contrário. Aproveitando o calor, tomamos banho de rio quando paramos para descansar. O movimento na estrada estava bastante fraco em virtude do feriado (ao menos pela parte da manhã) e resolvemos continuar pela mesma estrada, apesar de ser proibida a circulação de bicicletas. Depois de algum tempo, desviamos novamente para o litoral, ocasião em que encontramos uma grande quantidade de carros velhos abarrotados de gente com destino à praia. Concluímos logo que no Uruguai também há farofeiros como no Brasil, pois uma grande algazarra era ouvida tanto durante o deslocamento quanto na chegada à praia. O péssimo estado de conservação de alguns veículos e o excesso de lotação nos faziam imaginar que o número de acidentes de trânsito deveria ser muito maior.
Novamente costeando o litoral, fomos entrando em Montevideo. Percebemos muita sujeira na estrada e parecia que a cidade estava vazia, com todos aproveitando o feriado nas praias. Seguíamos ainda pela orla do Rio da Prata em direção ao centro, passando por um belo prédio antigo, quando furei meu pneu pela segunda vez na viagem. Parados na calçada, desmontamos a roda, retiramos o espinho e a câmara furada e colocamos uma nova. Com alguma dificuldade nos revezamos no enchimento do pneu (pois a pressão deveria ser grande para suportar o peso de todas as tralhas de viagem). Conserto feito, seguimos adiante.
Pedalamos por vários quilômetros, sempre nas proximidades da orla do rio, até encontrarmos as ruas que nos levariam ao albergue. A partir da localização no mapa, rapidamente encontramos o prédio antigo em estilo espanhol com portas de mais de quatro metros de altura onde está situado o Albergue da Juventude Schirrmann-Münker. Com nossas carteiras de alberguistas rapidamente encaminhamos o registro e fomos tomar um bom banho para afugentar o calor.
Para aproveitar o final de tarde, optamos por uma caminhada ao centro de Montevideo. Estranhamos a grande quantidade de lixo espalhado pelas ruas, e imaginamos que poderia ser resultado da festa de ano novo, mas mais tarde nos explicaram que era pura e simplesmente falta de consideração das pessoas com o ambiente em que vivem, infelizmente. Uma cidade com 1.300.000 habitantes deveria ter mais preocupação com esse problema.
No coração da cidade paramos na Plaza Independencia para comer papas fritas e tomar suco de laranja. Ao nosso lado podíamos ver prédios antigos e interessantes, como o Palacio Salvo e o Palacio Rinaldi. Continuando a caminhada, conhecemos a Puerta de la Ciudadela, construída em 1746 para servir como porta principal de entrada para quem chegava do porto. Vários prédios dessa parte da cidade, conhecida como Ciudad Vieja (Cidade Velha) compõem um circuito turístico recomendado aos visitantes. Seguimos por parte desse circuito e, no final do dia, decidimos ver o pôr-do-sol nas proximidades do porto. Na extremidade de um dos molhes que protege a sua entrada vimos o Buquebus, mais rápido barco de transporte que faz a travessia do Rio da Prata até Buenos Aires. Uma espécie de catamarã, chega a planar sobre a água e, com atrito muito reduzido, consegue atingir velocidades relativamente altas para uma embarcação de seu porte. Em Colonia del Sacramento tomaríamos um barco dessa mesma companhia de navegação para nossa travessia. Mas naquele momento ainda não estávamos preocupados com isso e tratamos de apreciar as cores do entardecer e as luzes da cidade que pouco a pouco desenhavam um novo perfil dessa nossa segunda grande capital do Mercosul.
Voltando ao albergue, encontramos uma alegre turma de gaúchos que estava na cidade para reforçar os conhecimentos na língua espanhola. Fomos convidados para comer melancia e aproveitamos a oportunidade para prepararmos a janta na cozinha do albergue. Mais tarde aproveitei para enviar e-mails contando um pouco a respeito daquilo que já havíamos vivido nos últimos dias.

Décimo primeiro dia (02/01/01 – terça) – Montevideo ao Acampamento da Ponte

Distância pedalada no dia: 87,73 km.
Distância total acumulada: 1217,36 km.
Tempo pedalado: 4 h 20 min 50 s.
Velocidade média: 20,2 km/h.
Velocidade máxima: 39,0 km/h.

Na saída de Montevideo, várias surpresas nos aguardavam.
Demoramos bastante para arrumar todo o material e, ao sair, percebi que o pneu traseiro estava furado, tendo esvaziado completamente durante a noite. No meio do albergue repetimos a “operação desmonte” que havíamos realizado no dia anterior (na entrada da cidade) e fomos procurar um talher, uma oficina de bicicletas. Na primeira que encontramos não faziam consertos e, no tempo que levamos para compreender isso, o pneu novamente estava completamente murcho. Novamente desmontei a roda e, desta vez verificando cuidadosamente o pneu, encontrei a causa de repetidos furos: um espinho se alojara firmemente e a cada novo conserto voltava a furar a câmara. Por via das dúvidas, além de remover o espinho, troquei também o pneu pelo reserva (que estava levando desde Nova Petrópolis). Voltamos a andar de uma loja de bicicletas para outra e nenhuma delas fazia serviços de mecânica. Jacson teve que comprar um banco (selim) novo, pois ao tentar levantar sua superpesada bicicleta acabou por estragar o antigo.
Com os problemas supostamente solucionados, começamos a sair da cidade. Para meu desespero, novamente vi meu pneu traseiro murchar completamente. Paramos em um posto de gasolina, desmontei mais uma vez a roda e, pasmem, consegui estourar mais uma câmara quando utilizava um compressor de ar inadequado para bicicletas!!! Solução: fui à procura de uma nova câmara. Para completar a cena que parecia ter saído de um filme “pastelão”, as lojas estavam fechadas para almoço e a consagrada siesta. Caminhei várias quadras para voltar a uma loja de grande porte (mais parecia um supermercado de peças para bicicletas) que estava aberta, mas demorei bastante tempo para ser atendido. Comprei duas novas câmaras e voltei correndo ao posto, procurando evitar um “motim” por parte de meus companheiros de viagem. Nesse dia, se alguém tentou testar minha paciência, parabéns! Conseguiu!!!
Às duas horas da tarde, finalmente, começávamos a sair de Montevideo. Por pouco não precisamos voltar, pois meu pai quase sofreu um acidente quando, ao cruzar trilhos de trem que cruzavam a estrada obliquamente, um carro com um bando de inconseqüentes cortou sua frente. Deixando a cidade para trás, seguíamos agora pela Ruta 1 em direção a Colonia del Sacramento, enfrentando “apenas” o forte calor e o vento contrário. A esse tipo de dificuldade pelo menos já estávamos nos acostumando...
As poucas horas das quais dispúnhamos para pedalar foram se esgotando rapidamente e nossa idéia inicial de pedalar até a localidade de Elcida Paulier não poderia ser concretizada porque a distância era demasiado grande. Em uma pequena vila paramos para obter informações e, pela primeira vez, fomos vistos com uma certa desconfiança pelos uruguaios. Nesse episódio, porém, tivemos alguma parcela de culpa pela forma de abordagem. Meu pai, com a melhor das intenções, perguntou se havia no local algum posto policial. Creio que foi mal interpretado, pois os desconfiados quase-amigos pensaram que estávamos evitando La Policia. Isso ficou mais do que evidente quando nos indicaram uma ponte como local de parada e, bem mais adiante, um local supostamente muito melhor! Na verdade, queriam nos ver longe dali!!! Com o sol já se aproximando do horizonte tratamos de pedalar e encontrar o tal local onde poderíamos acampar. Em uma ponte encontramos um casal e filhos tentando pescar. O riacho, entretanto, não passava de água parada e malcheirosa já utilizada por uma indústria de laticínios. Em pleno campo, foi o pior local de acampamento que encontramos até então. Nem água para banho havia e naquele dia não foi muito agradável dormir com o corpo castigado por um dia quente. As aventuras do dia terminaram com a constatação de que parte da ponte estava ruindo e que havíamos montado acampamento justamente debaixo da parte comprometida. Durante a noite sentíamos a ponte tremer com a passagem dos caminhões, esperando que no dia seguinte todos estivessem inteiros para poder contar a história!...

Wednesday, January 03, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - sexto capítulo


Nono dia (31/12/00 – domingo) – La Barra (Punta del Este) a Piriápolis

Pedalando entre enormes mansões e já divisando os grandes edifícios do centro, entrávamos em Punta del Este, marco importante em nosso itinerário rumo ao Chile. Era o nono dia de pedalada, um domingo ensolarado. Muitas pessoas já disputavam espaço nas praias mais movimentadas de Punta, enquanto outras passeavam tranqüilamente pelo calçadão. Um dos pontos turísticos mais conhecidos dessa famosa praia é a escultura em formato de mão que parece emergir da areia, conhecida como Los Dedos, onde paramos para algumas fotografias. Depois disso, seguimos diretamente ao coração da cidade, a Avenida Gorlero.
Seguimos a pé, empurrando nossas bicicletas pela calçada e no centro da cidade fizemos uma breve parada para lanche. Estacionado bem à nossa frente um estranho automóvel chamava a atenção por ser completamente diferente dos conversíveis luxuosos que já havíamos visto: era uma Romiseta, veículo menor do que a minha bicicleta.
Percorrendo a parte central da península, chegamos às proximidades da área portuária e desviamos à esquerda para conhecer o Iate Clube de Punta del Este. A primeira surpresa positiva foi constatar que poderíamos entrar até a marina (onde estavam atracados os veleiros) e que não precisaríamos nos identificar, pedir autorização ou pagar qualquer espécie de taxa – ou seja, era uma marina realmente pública, o que não é comum em nosso país. Em Porto Alegre, por exemplo, é preciso ser convidado por algum sócio para poder permanecer no clube náutico. A surpresa seguinte foi avistar os lobos marinhos disputando com as gaivotas os restos de peixes que os transeuntes recolhiam com os pescadores e lhes ofereciam. Pudemos nos aproximar bem desses imensos animais e ouvir sua respiração forte quando colocavam a cabeça para fora da água, espreitando-nos em busca de alimento.
Depois de ver gaivotas, lobos marinhos e barcos para todos os gostos e bolsos, seguimos pela avenida beira-mar (Rambla General Artigas) em direção à ponta da península. Pude fotografar o farol de Punta del Este somente por fora, pois as visitas não eram permitidas pela Marinha. Pedalamos pelo litoral, novamente pela escultura em formato de mão e, agora em sentido transversal, pelo centro da cidade, rumo à Ruta 10, nossa rota de saída em busca de novas paisagens. Passamos pelo famoso Casino Conrad e fomos nos distanciando cada vez mais do centro. A partir dali, Punta del Este começaria a fazer parte de nossa memória.
Em nosso caminho para Piriápolis encontramos Punta Ballena - pronuncia-se “Punta Bajena” e, como podemos concluir, traduz-se por Ponta Baleia ou Ponta das Baleias. Depois de uma longa subida, deixamos a Ruta 10 e seguimos à esquerda por uma grande ponta de pedras que avança mar adentro. Um local muito bonito, cercado pelas águas azuis do oceano, com vista para Punta del Este (obviamente, para o Leste), Baía de Portezuelo e Piriápolis (olhando para o Oeste). De Punta Ballena podíamos avistar o caminho que ainda pretendíamos percorrer naquele dia, o último do ano 2000.
Retornando para a Ruta 10 passamos por um cartão postal chamado Casapueblo, residência de um eclético artista plástico e poeta uruguaio chamado Carlos Paez Villaró. A construção é totalmente branca e inspirada nos tradicionais prédios do Mediterrâneo, com formas arredondadas; em seu interior, um museu, o ateliê do artista, um bar/restaurante e, claro, uma loja de artesanato. Para entrar precisaríamos fazer uma visita guiada e pagar um ingresso “não muito simbólico” de cinco dólares por pessoa, então resolvemos colocar o pé na estrada com destino a Piriápolis.
O dia estava bastante quente e aproveitamos para tomar iogurte. Como já havíamos descoberto, tanto os produtos lácteos (de modo geral) como os pães uruguaios eram extremamente deliciosos, completamente diferentes do “pão-de-vento” cheio de bromato que encontramos no Brasil. Os iogurtes e os sorvetes eram cremosos, o leite mais consistente, os queijos, então... uma delícia! Mas não estávamos lá somente para aproveitar a gastronomia, felizmente. Queríamos atravessar o continente com nossas próprias pernas e vislumbrar as águas ainda desconhecidas do Oceano Pacífico, descortinando novas paisagens e conhecendo um pouco das novas culturas que encontrávamos em diferentes regiões. Subimos nas bicicletas carregadas e tomamos a direção de Piriápolis.
O sol forte nos castigou bastante e enfrentamos várias subidas. Além desses dois fatores adversos, comecei a sentir um desagradável desconforto estomacal. Quando planejamos uma viagem dificilmente podemos prever que adversidades encontraremos pelo caminho; a solução é, portanto, enfrentá-las. O último dia do ano não era exatamente um bom dia para esse tipo de problema, mas não era algo sobre o qual eu tinha qualquer controle. Algum alimento ou provavelmente água seria a causa, mas isso nunca descobriríamos.
Piriápolis é uma das cidades balneárias mais populares e tradicionais, situada ao pé de vários cerros, no km 98 da Ruta 10. Ainda no acesso à praia encontramos o Camping El Toro, onde paramos para decidir se seguiríamos até o Albergue da Juventude ou se ficaríamos acampados. Fui voto vencido e acabamos seguindo para o camping, passando antes pela Fuente de Venus. Escolhemos um local e armamos o acampamento auxiliados por um casal de vizinhos uruguaios. Na hora de montar minha barraca um grande rasgo destruiu parcialmente uma bolsa dos pólos de sustentação. O vizinho veio em nosso auxílio com linha e agulha, costurou a parte rasgada e colou com fita adesiva (silver tape), dando várias dicas sobre o que havia sido seu ofício. Com acampamento montado, seguimos a pé pela cidade até a praia, parando na Rambla de los Argentinos. Muitas pessoas afugentavam o calor tomando banho e resolvemos seguir o exemplo. A água, transparente, não chegava a ser completamente salgada, o que se explica pela foz do Rio da Prata. Estávamos na fronteira entre rio e mar, em um imenso estuário em forma de funil invertido que naquele local tinha mais de cem quilômetros de largura. Seguindo para Colonia del Sacramento essa distância seria reduzida a quarenta quilômetros, que pretendíamos atravessar de barco.
Após o banho a fome se fez sentir e comemos pastéis de frutos do mar em uma banca de pescadores. Visitamos também a marina, onde um imenso veleiro – Don Juan, de Londres – estava atracado. O dia já estava terminando e eu pretendia ver o pôr-do-sol de algum local interessante, então resolvi subir o Cerro San Antonio. Egon e Jacson preferiram seguir direto para um mercado e voltar ao camping, pois imaginavam que já estivesse tarde demais para conseguir subir a estrada que dava voltas morro acima. Comecei subindo pelo asfalto e, encontrando uma pequena trilha que seguia junto aos postes de sustentação da aerosilla, uma espécie de teleférico, consegui atalhar grande parte do caminho e chegar a tempo. No topo desse cerro está situada a Templeta de San Antonio (uma capela com a respectiva imagem do santo), um restaurante, uma antena e lojas de recuerdos, claro. Fiquei bastante tempo apreciando a belíssima vista do lugar e o pôr-do-sol sobre o Rio da Prata. Pouco a pouco as luzes da cidade foram se acendendo e a baía refletia o colorido dos primeiros fogos de Ano Novo. Ao longe era possível imaginar Montevideo pelo clarão de suas luzes e, para o lado oposto, Punta del Este. Estava ficando tarde e eu precisava voltar ao camping, então fiz mais algumas fotografias e retornei.
A passagem de ano não foi muito agradável, pois o mal-estar no estômago havia piorado. Senti frio por causa da febre e tomei um bom banho quente. O casal de vizinhos uruguaios, muito prestativo, preparou um chá e deu boas recomendações que auxiliaram no tratamento, além de sugestões sobre o roteiro e acesso a Montevideo, onde pretendíamos chegar no dia seguinte. Apesar de não ter apenas bons momentos, numa viagem desse tipo podemos descobrir que ainda existem pessoas com disposição para solidarizar-se e ajudar os demais. Obrigado, amigos uruguaios!
Nesse último dia do ano 2000, os dados registrados pelo ciclocomputador foram:

Distância pedalada no dia: 63,05 km.
Distância total acumulada: 1018,45 km.
Tempo pedalado: 3 h 49 min 47 s.
Velocidade média: 16,5 km/h.
Velocidade máxima: 61 km/h.

Monday, January 01, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - quinto capítulo


Se na noite de Natal os mosquitos é que não nos haviam deixado dormir, desta vez o problema foi diferente e até mesmo cômico (para quem não teve que passar por ele!). No Albergue Altena 5000, em La Paloma, no Uruguai, nosso grande (em tamanho) vizinho de alojamento deve ter imaginado que gostaríamos de participar de seus sonhos, pois roncava e falava – o que é pior, em espanhol! – em tom tão alto que o meu beliche chegava a estremecer!!! Por ser uma pessoa que poderíamos considerar obesa, sua caixa de ressonância proporcionalmente grande nos fez sofrer para pegar no sono. Mas precisávamos descansar para, no outro dia, quem sabe, conhecermos Punta del Este, a cidade dos ricos e famosos!

Oitavo dia (30/12/00 – sábado) – La Paloma a La Barra (Punta del Este)

Distância pedalada no dia: 135,54 km.
Distância total acumulada: 955,39 km.
Tempo pedalado: 6 h 24 min 52 s.
Velocidade média: 21,2 km/h.
Velocidade máxima: 50,5 km/h.

Nesse segundo sábado de viagem acordamos cedo e tomamos o café oferecido pelo albergue: café com leite e três croissants – pouco para sustentar um dia de pedalada. Saímos do Parque Andresito e fomos à oficina de bicicletas onde havíamos passado no dia anterior. Após pequenos reparos e uma breve parada para calibrar os pneus, seguimos viagem, passando uma vez mais pela orla marítima para fotografar a praia de La Paloma. Pedalamos até Costa Azul – uma praia com cores fantásticas! – e retornamos ao acesso principal (Ruta 15) para chegarmos novamente à Ruta 9, afastando-nos um pouco do litoral. No entroncamento com a referida via paramos ao lado de um posto de gasolina para lanchar, já que o café da manhã havia sido pouco substancial.
Novamente seguindo rumo ao sul, encontramos vento contrário. Não muito forte, mas constante, desgastando-nos por causa da grande superfície dos alforjes com bagagem exposta ao vento. A baixa velocidade nos permitia apreciar a paisagem e perceber o quanto o relevo já havia mudado, pois naquele momento já encontrávamos várias subidas e descidas de coxilhas. Por volta do meio dia encontramos um Parador na beira da estrada e almoçamos uma “milanesa” (lanche muito comum na região), composto por pão e um bife à milanesa incrivelmente maior!
Precisamente no km 143 entramos à esquerda, seguindo agora pela Ruta 104 com destino à praia de Manantiales. Pelo caminho vimos muitas árvores com galhos destruídos pelo vento – aquele mesmo que havia soprado quando passávamos pela imensa região de banhados do Taim, no Rio Grande do Sul. Ao lado da rodovia encontramos uma fábrica artesanal de tijolos onde paramos para conhecer o processo de fabricação. Os tijolos são confeccionados com capim misturado ao barro do próprio local. Formas de madeira com capacidade para dois tijolos recebem a mistura, que é então compactada e desenformada. Uma pilha com algumas unidades fica alguns dias secando ao sol e posteriormente é levada ao forno para cozimento. Segundo a explicação de um velho senhor que trabalhava no local, uma pessoa com bom ritmo de trabalho consegue produzir dois mil tijolos por dia mas essa produção, entretanto, pode sofrer grandes baixas, pois depende das condições de tempo. Quando chegamos ao local muitos tijolos estavam sendo lançados de volta à lama pois haviam sido destruídos pelo temporal. Infelizmente esse tipo de indústria primitiva está desaparecendo, sufocado pela pressão imposta pelas grandes empresas do setor. A respeito do temporal, ficamos sabendo que na região grandes estragos haviam acontecido em algumas faixas de terra, como se tornados houvessem passado em locais específicos, arrancando telhados e destruindo placas.
Voltando à estrada, ao chegarmos a Manantiales fomos diretamente ao Albergue da Juventude. Infelizmente estava sem vagas disponíveis e não poderíamos ficar, apenas acampar. Optamos por seguir em frente, rumo a Punta del Este pela Ruta 10, costeando o litoral. Passamos pela lotadíssima Playa Bikini – onde tivemos que manobrar entre conversíveis e todos os incontáveis carros de luxo dos novos-ricos freqüentadores –, Montoya e chegamos a La Barra. O Balneario La Barra está situado a onze quilômetros de Punta del Este e seu nome deve-se à desembocadura do Arroyo Maldonado. A travessia desse curso d’água é feita pela Puente Leonel Vieira, também conhecida por Puente Colgante de la Barra. Construída em 1965, é o cartão-postal da praia, pois possui uma interessante estrutura ondulante que chama muito a atenção.
Passando pela ponte, seguimos rumo a Punta del Este pedalando entre o mar e as enormes mansões com verdes gramados sempre irrigados que parecem campos de golfe. Um local onde o luxo e a riqueza parecem fazer parte do cotidiano. Mas nem sempre foi assim. Em 1829 chamava-se Ituzaingó e apenas a partir de 1907 ganhou o seu nome definitivo e internacionalmente conhecido. No início de sua povoação a península enfrentava grandes problemas com o transporte, pois dunas móveis constantemente impediam o acesso ao local, tornando-a refúgio para uns poucos pescadores. A urbanização foi lenta e foi somente na década de 50 que começou a se processar em ritmo mais acelerado. Nos últimos anos teve um crescimento de grande magnitude e, se somarmos as praias vizinhas e a cidade de Maldonado, encontraremos mais de 100.000 habitantes permanentes.
Seguindo adiante, fomos parados por Pablo Corradi, um fotógrafo que trabalhava no Jornal La Nacion. Ele gostaria de aproveitar a excelente luz do final da tarde para nos fotografar pedalando. Concordamos, ele nos fotografou e prosseguimos viagem. Em Punta del Este procuramos em vão por um local para passar a noite que atendesse às nossas expectativas de simplicidade e baixo custo. Nenhum camping ou albergue. Decidimos então seguir uma indicação e voltamos às proximidades da Puente de La Barra e, depois de uma breve procura, encontramos o excelente Camping San Rafael, um dos melhores – senão o melhor – campings privados do Uruguai. O camping possui 212 lotes cercados e arborizados para barracas, trailers e reboques. Cada um com uma churrasqueira, mesa com bancos e acesso à eletricidade. Existem várias áreas de acesso comum com telhado e churrasqueiras, mesas, bicas de água, pias, além, naturalmente, de banheiros com água quente. Além disso, o local oferece serviços de cafeteria, restaurante, supermercado, lavanderia, sala de jogos, tv e vídeo, telefones, correio, atendimento médico, piscina para crianças, quadras para várias modalidades esportivas (futebol, basquete, vôlei, tênis, bocha), isso tudo com segurança 24 horas por dia. Preferindo ainda mais conforto e comodidade, pode-se optar por alugar uma cabana. Realmente um exemplo de organização e sem dúvida um negócio lucrativo (pela quantidade de usuários que encontramos).
Ao lado do nosso acampamento um casal de suíços preparava um jantar à luz de velas – eles haviam começado a viajar pela América do Sul a partir do Equador e, como nós, estavam na região para a passagem de ano novo; aproveitamos o clima festivo da data para prepararmos uma janta caprichada (queijo, pão, leite, suco de laranja, sardinhas, manteiga, mel, café, sopa, massas, bolachas...) e dormimos excelentemente bem, já que todos os nossos inúmeros vizinhos de camping provavelmente já estavam habituados a respeitar todos ao seu redor. Isso nos chamou a atenção, pois no Brasil é difícil encontrar vizinhos de acampamento que respeitem os demais. Acampamento para muitos ainda é sinônimo de bebedeira e barulho.
Nos próximos dias pretendíamos pedalar por Punta del Este, conhecer Piriápolis e nossa segunda capital no Mercosul, Montevidéo. Daí para a frente teríamos apenas mais dois dias em território uruguaio, pois chegando em Colonia del Sacramento tomaríamos um barco para atravessar o Rio da Prata e entrar na Argentina. Mas até lá haveria ainda um longo caminho e algumas surpresas, como pneus furados e um inesperado acampamento debaixo de uma ponte.