O final-de-semana de 10 e 11 de fevereiro de 2007 seria de velejada na Lagoa Itapeva mas, apesar do vento sul perfeito, o que aconteceu mesmo foi uma caiacada no marzão de Rondinha.
Thursday, February 15, 2007
Monday, February 12, 2007
De bicicleta pelo Cone Sul - décimo capítulo
Egon, Jacson e eu pedalávamos sob o sol escaldante torcendo para que não demorássemos muito a chegar em Luján. A cidade surgiu devido a uma interessante história que vale a pena conhecer: em 1960, um vagão contendo uma pintura da virgem, vindo do Brasil e seguindo para uma fazenda portuguesa, não prosseguia viagem enquanto os gaúchos (daquelas paragens) não removessem a pintura. Os fiéis ergueram então uma capela onde a virgem havia “escolhido ficar”, a aproximadamente 5 km de onde está a cidade. A virgem recebeu o nome mais pomposo de La Virgen de Luján e hoje encontra-se na grandiosa Basílica de Luján, em estilo gótico francês. Todo o ano cerca de quatro milhões de peregrinos visitam Luján para homenagear a virgem por suas intercessões em questões de paz, saúde, amor e consolação. Em outubro acontece uma peregrinação desde Buenos Aires, a 62 km, uma jornada que dura cerca de 18 horas. Nos dias passados de ditadura militar, em que qualquer manifestação de massa era proibida, essa caminhada tinha uma tremenda importância simbólica, mas desde que a democracia foi restaurada no país, a procissão de fiéis tem um caráter muito mais devocional. Outra data importante em que ocorre grande afluência de devotos é oito de maio, dia da virgem.
Logo nas proximidades da cidade facilmente avistamos as torres da basílica, com 106 metros de altura, e fomos conhecê-la. Jacson preferiu ficar descansando na sombra das árvores, do lado de fora. Nas proximidades vários “camelôs espirituais” vendiam tudo o que era possível relacionar com a tal senhora que deveria mesmo ser santa pois, mesmo depois de falecida, com toda a certeza os ajudava a sobreviver! Uma placa proibia o recolhimento de esmolas, mas no interior várias caixas pediam donativos para a santa obra. A concorrência deveria ser grande! Comentários irônicos à parte, trata-se de uma igreja muito interessante, com detalhes ricamente trabalhados em seu interior. Dentro da basílica placas homenageiam as famílias que fizeram as doações (e puderam receber o status) para que a obra fosse realizada. Na saída várias crianças pediram moedas, mas não souberam se satisfazer com centavos – queriam pesos! Com a cotação de um peso para um dólar, tratamos de voltar a colocar o pé na estrada e, apesar do cansaço de Jacson, decidimos pedalar até Carmen de Areco, onde provavelmente poderíamos encontrar um camping.
A luz do sol pouco a pouco diminuía de intensidade, anunciando mais um belo final de tarde. Em um pedágio ganhamos água gelada e uma garrafa de água congelada que nos garantiu uma boa reserva para enfrentar os quilômetros que ainda faltavam. Apesar de até então não termos encontrado grandes problemas de trânsito no caminho, nesta tarde fui tirado da pista por um caminhão que era ultrapassado por outro. A estrada não tinha acostamento, mas uma grande área de escape gramada. Felizmente não encontrei nenhum buraco pela frente, que poderia ter comprometido a estrutura da bicicleta (com todo o peso das bagagens), teria provocado um belo furo nos pneus e talvez um aro entortado (o que seria realmente grave). Mas tudo correu bem, o susto passou e as belas paisagens voltaram a dominar a cena onde campos dourados concorriam com plantações de girassol.
Chegando em Carmen de Areco, parei em uma Estación de Servicio (posto de gasolina) para pedir informações sobre camping. Acabei recebendo um convite para ficarmos acampados no ACA – Automóvil Club Argentino – e utilizar suas instalações. Eu havia pedalado na frente, pois Jacson reclamara do ritmo muito forte; quando meu pai e Jacson chegaram, já tínhamos chuveiro quente à disposição. Montamos acampamento e após um merecido banho aproveitamos a comodidade que o restaurante do posto proporcionava para saborearmos um bife à milanesa com fritas. Fomos nos recolher para descansar debaixo de um belo céu estrelado.
Décimo quinto dia (06/01/01 – sábado) – Carmen de Areco a Chacabuco
Distância pedalada no dia: 79,06 km.
Distância total acumulada: 1574,23 km.
Tempo pedalado: 3 h 55 min 30 s.
Velocidade média: 20,1 km/h.
Velocidade máxima: 31,0 km/h.
Após duas semanas de estrada, nessa manhã de sábado resolvemos dormir um pouco mais e aproveitamos para tomar um bom café com leite e comer pão com manteiga e mel no posto de gasolina. Relatei no diário que as instalações dos postos de gasolina por aqui são muito boas, com tudo funcionando, em ordem e limpo. Uma beleza.
Saímos bem devagar para deixar Jacson tomar a dianteira, na esperança de que essa estratégia servisse para incentivá-lo a pedalar em um ritmo um pouco mais forte. Mas não obtivemos a resposta esperada e a velocidade foi bastante baixa, apesar do dia nublado e do vento lateral (às vezes levemente favorável). Nesse tipo de viagem o entrosamento entre os integrantes pode ser fundamental para o sucesso da empreitada; diferenças de performance muito grandes acabam por desagradar os participantes – um por se sentir incapaz de acompanhar os demais e outro por não poder pedalar em um ritmo mais forte, como gostaria. Essa questão é importante mas dificilmente pode ser avaliada durante o planejamento, antes da saída, se não forem feitos eventos preparatórios onde se possa testar a capacidade física e o entrosamento entre os potenciais participantes. Em nosso caso, havíamos pedalado somente em uma ocasião, durante a realização de um projeto Pedalando Nova Petrópolis. Felizmente não fomos seriamente afetados pela falta de entrosamento a ponto de formarmos dois grupos distintos, mas poderíamos ter conversado a respeito do desenvolvimento da pedalada muito antes de enfrentarmos problemas.
Paramos na hora do almoço em um armazém para descansarmos e tomamos leite gelado e água. Após a parada tomei novamente a dianteira até a cidade de Chacabuco, um pouco preocupado com uma grande formação de nuvens que parecia estar se transformando em um temporal. Em um posto de gasolina comprei um refrigerante e esperei pelos companheiros de viagem. Ao chegarem, ficamos novamente muito tempo parados para descansar. Combinamos que seguiríamos até a cidade de Junín ainda naquele dia.
O tempo, no entanto, nem sempre colabora conosco. As nuvens que prometiam temporal realmente se agruparam e, em pouco tempo, os primeiros raios começaram a dar sinal de que teríamos mau tempo pela frente. Encostei a bicicleta em frente a uma propriedade e comecei a ensacar o material que não estava preparado para a chuva. Um rapaz estava nas proximidades e prontamente ofereceu uma límpida e refrescante água de poço. Foi assim que travamos o primeiro contato com Éber e seu pai, proprietário da fazenda onde eram cultivados cereais e criadas algumas vacas. Junto com os primeiros pingos grossos de chuva recebemos convite para guardarmos as bicicletas em um pequeno depósito, pois havia perigo de granizo. Éber também gostava de ciclismo, mas havia parado de treinar para competições quando percebeu que só teria chances de competir com os ciclistas de ponta quando também se utilizasse de anabolizantes e outras substâncias dopantes – o que infelizmente é comum no ciclismo competitivo de alto nível. Quando a chuvarada começou fomos “invitados” a entrar na casa; prontamente aceitamos o convite para tomar um belo chimarrão. O vento aumentou bastante de intensidade e a energia elétrica foi interrompida. Conversamos bastante e pudemos concluir que a situação geral dos países da América do Sul é muito semelhante (e deprimente), embora o Chile pareça ser um caso à parte. Nessa conversa nos chamou bastante a atenção o fato de Éber e seu pai conhecerem bastante o seu país – fornecendo informações sobre o nível de desemprego, política e economia. Concluímos que na Argentina, assim como no Brasil, a “politicagem” parece ser um grande problema. Além de política, conversamos também sobre o tipo de atividade desenvolvida na região. A agricultura é predominante, juntamente com a pecuária. Eles nos surpreenderam ao comentar acerca da quantidade de chuva em milímetros, pois no Brasil sempre estávamos acostumados a ouvir que “choveu pouco” ou “choveu muito”. Quase todos os agricultores uruguaios monitoram constantemente a chuva com pluviômetros e têm noção exata da quantidade de chuva que é normal para cada período. Ao longo da conversa percebemos que o tempo se manteria em péssimas condições ainda por algumas horas, senão até o dia seguinte. O galpão onde estavam as bicicletas foi colocado à nossa disposição se quiséssemos pernoitar. Poderíamos instalar os sacos de dormir entre utensílios para a lida no campo e sacos de soja. Não precisaríamos nem montar acampamento. Foi o que fizemos.
No final da tarde a chuva deu uma trégua e aproveitamos para nos deliciar comendo doces “siruelas” (ameixas). Ganhamos um pedaço de pão com presunto que, juntamente com as siruelas, foi nossa janta. A última claridade amarelada na direção do poente ainda permitiu a atualização do diário de viagem antes de cairmos no sono. Naquele momento, jamais poderíamos imaginar que no dia seguinte encontraríamos um grande companheiro de viagem...
Logo nas proximidades da cidade facilmente avistamos as torres da basílica, com 106 metros de altura, e fomos conhecê-la. Jacson preferiu ficar descansando na sombra das árvores, do lado de fora. Nas proximidades vários “camelôs espirituais” vendiam tudo o que era possível relacionar com a tal senhora que deveria mesmo ser santa pois, mesmo depois de falecida, com toda a certeza os ajudava a sobreviver! Uma placa proibia o recolhimento de esmolas, mas no interior várias caixas pediam donativos para a santa obra. A concorrência deveria ser grande! Comentários irônicos à parte, trata-se de uma igreja muito interessante, com detalhes ricamente trabalhados em seu interior. Dentro da basílica placas homenageiam as famílias que fizeram as doações (e puderam receber o status) para que a obra fosse realizada. Na saída várias crianças pediram moedas, mas não souberam se satisfazer com centavos – queriam pesos! Com a cotação de um peso para um dólar, tratamos de voltar a colocar o pé na estrada e, apesar do cansaço de Jacson, decidimos pedalar até Carmen de Areco, onde provavelmente poderíamos encontrar um camping.
A luz do sol pouco a pouco diminuía de intensidade, anunciando mais um belo final de tarde. Em um pedágio ganhamos água gelada e uma garrafa de água congelada que nos garantiu uma boa reserva para enfrentar os quilômetros que ainda faltavam. Apesar de até então não termos encontrado grandes problemas de trânsito no caminho, nesta tarde fui tirado da pista por um caminhão que era ultrapassado por outro. A estrada não tinha acostamento, mas uma grande área de escape gramada. Felizmente não encontrei nenhum buraco pela frente, que poderia ter comprometido a estrutura da bicicleta (com todo o peso das bagagens), teria provocado um belo furo nos pneus e talvez um aro entortado (o que seria realmente grave). Mas tudo correu bem, o susto passou e as belas paisagens voltaram a dominar a cena onde campos dourados concorriam com plantações de girassol.
Chegando em Carmen de Areco, parei em uma Estación de Servicio (posto de gasolina) para pedir informações sobre camping. Acabei recebendo um convite para ficarmos acampados no ACA – Automóvil Club Argentino – e utilizar suas instalações. Eu havia pedalado na frente, pois Jacson reclamara do ritmo muito forte; quando meu pai e Jacson chegaram, já tínhamos chuveiro quente à disposição. Montamos acampamento e após um merecido banho aproveitamos a comodidade que o restaurante do posto proporcionava para saborearmos um bife à milanesa com fritas. Fomos nos recolher para descansar debaixo de um belo céu estrelado.
Décimo quinto dia (06/01/01 – sábado) – Carmen de Areco a Chacabuco
Distância pedalada no dia: 79,06 km.
Distância total acumulada: 1574,23 km.
Tempo pedalado: 3 h 55 min 30 s.
Velocidade média: 20,1 km/h.
Velocidade máxima: 31,0 km/h.
Após duas semanas de estrada, nessa manhã de sábado resolvemos dormir um pouco mais e aproveitamos para tomar um bom café com leite e comer pão com manteiga e mel no posto de gasolina. Relatei no diário que as instalações dos postos de gasolina por aqui são muito boas, com tudo funcionando, em ordem e limpo. Uma beleza.
Saímos bem devagar para deixar Jacson tomar a dianteira, na esperança de que essa estratégia servisse para incentivá-lo a pedalar em um ritmo um pouco mais forte. Mas não obtivemos a resposta esperada e a velocidade foi bastante baixa, apesar do dia nublado e do vento lateral (às vezes levemente favorável). Nesse tipo de viagem o entrosamento entre os integrantes pode ser fundamental para o sucesso da empreitada; diferenças de performance muito grandes acabam por desagradar os participantes – um por se sentir incapaz de acompanhar os demais e outro por não poder pedalar em um ritmo mais forte, como gostaria. Essa questão é importante mas dificilmente pode ser avaliada durante o planejamento, antes da saída, se não forem feitos eventos preparatórios onde se possa testar a capacidade física e o entrosamento entre os potenciais participantes. Em nosso caso, havíamos pedalado somente em uma ocasião, durante a realização de um projeto Pedalando Nova Petrópolis. Felizmente não fomos seriamente afetados pela falta de entrosamento a ponto de formarmos dois grupos distintos, mas poderíamos ter conversado a respeito do desenvolvimento da pedalada muito antes de enfrentarmos problemas.
Paramos na hora do almoço em um armazém para descansarmos e tomamos leite gelado e água. Após a parada tomei novamente a dianteira até a cidade de Chacabuco, um pouco preocupado com uma grande formação de nuvens que parecia estar se transformando em um temporal. Em um posto de gasolina comprei um refrigerante e esperei pelos companheiros de viagem. Ao chegarem, ficamos novamente muito tempo parados para descansar. Combinamos que seguiríamos até a cidade de Junín ainda naquele dia.
O tempo, no entanto, nem sempre colabora conosco. As nuvens que prometiam temporal realmente se agruparam e, em pouco tempo, os primeiros raios começaram a dar sinal de que teríamos mau tempo pela frente. Encostei a bicicleta em frente a uma propriedade e comecei a ensacar o material que não estava preparado para a chuva. Um rapaz estava nas proximidades e prontamente ofereceu uma límpida e refrescante água de poço. Foi assim que travamos o primeiro contato com Éber e seu pai, proprietário da fazenda onde eram cultivados cereais e criadas algumas vacas. Junto com os primeiros pingos grossos de chuva recebemos convite para guardarmos as bicicletas em um pequeno depósito, pois havia perigo de granizo. Éber também gostava de ciclismo, mas havia parado de treinar para competições quando percebeu que só teria chances de competir com os ciclistas de ponta quando também se utilizasse de anabolizantes e outras substâncias dopantes – o que infelizmente é comum no ciclismo competitivo de alto nível. Quando a chuvarada começou fomos “invitados” a entrar na casa; prontamente aceitamos o convite para tomar um belo chimarrão. O vento aumentou bastante de intensidade e a energia elétrica foi interrompida. Conversamos bastante e pudemos concluir que a situação geral dos países da América do Sul é muito semelhante (e deprimente), embora o Chile pareça ser um caso à parte. Nessa conversa nos chamou bastante a atenção o fato de Éber e seu pai conhecerem bastante o seu país – fornecendo informações sobre o nível de desemprego, política e economia. Concluímos que na Argentina, assim como no Brasil, a “politicagem” parece ser um grande problema. Além de política, conversamos também sobre o tipo de atividade desenvolvida na região. A agricultura é predominante, juntamente com a pecuária. Eles nos surpreenderam ao comentar acerca da quantidade de chuva em milímetros, pois no Brasil sempre estávamos acostumados a ouvir que “choveu pouco” ou “choveu muito”. Quase todos os agricultores uruguaios monitoram constantemente a chuva com pluviômetros e têm noção exata da quantidade de chuva que é normal para cada período. Ao longo da conversa percebemos que o tempo se manteria em péssimas condições ainda por algumas horas, senão até o dia seguinte. O galpão onde estavam as bicicletas foi colocado à nossa disposição se quiséssemos pernoitar. Poderíamos instalar os sacos de dormir entre utensílios para a lida no campo e sacos de soja. Não precisaríamos nem montar acampamento. Foi o que fizemos.
No final da tarde a chuva deu uma trégua e aproveitamos para nos deliciar comendo doces “siruelas” (ameixas). Ganhamos um pedaço de pão com presunto que, juntamente com as siruelas, foi nossa janta. A última claridade amarelada na direção do poente ainda permitiu a atualização do diário de viagem antes de cairmos no sono. Naquele momento, jamais poderíamos imaginar que no dia seguinte encontraríamos um grande companheiro de viagem...
De bicicleta pelo Cone Sul - nono capítulo
Décimo terceiro dia (04/01/01 – quinta) – De Colonia a Buenos Aires de navio
Distância pedalada no dia, em Buenos Aires: 9,36 km.
Distância total acumulada: 1344,43 km.
Tempo pedalado: 47 min 40 s.
Velocidade média: 11,7 km/h.
Velocidade máxima: 31,5 km/h.
Confortavelmente instalados em cadeiras no deck do Eladia Isabel, víamos as luzes de Colonia del Sacramento diminuindo na distância até sumirem no imenso estuário do Rio da Prata. Cercados pelas águas, observando a esteira formada pelo deslocamento do navio, esperamos calmamente o dia amanhecer. Tínhamos bastante tempo para refletir sobre tudo o que já havíamos feito, relembrar os mais de mil e trezentos quilômetros que já havíamos percorrido somente com as forças de nossas próprias pernas, comandadas por nossa própria determinação. Seria muito mais fácil embarcar em um carro ou tomar um ônibus, poderiam afirmar alguns. A resposta seria simples, mas nenhuma palavra poderia descrevê-la melhor do que a própria realização. Conceber um projeto e torná-lo possível é uma experiência fantástica que excede muito as fronteiras de uma simples viagem. Foi assim, refletindo sobre a viagem e extasiados com a possibilidade de conhecer um novo país, que vimos um novo dia nascer sobre as águas do Rio da Prata.
Elevadores e até lojas haviam sido projetados e construídos dentro do navio. O Eladia Isabel transportava carros, caminhões e ônibus em seu compartimento-garagem inferior, enquanto os passageiros distribuíam-se em vários andares; alguns instalavam-se em poltronas ou em cadeiras, outros simplesmente escolhiam um canto e cochilavam. O deck do navio permitia a vista em várias direções e garantia uma brisa constante. À popa as margens do Uruguai há muito já haviam desaparecido quando os primeiros contornos de Buenos Aires se tornavam perceptíveis. Pouco a pouco essa imensa metrópole começava a se revelar. Uma excessiva quantidade de arranha-céus crescia diante de nossos olhos e ficamos nos perguntando como faríamos para encontrar o albergue em meio àquela floresta de edifícios, numa cidade cuja região metropolitana abriga cerca de doze milhões de pessoas.
O navio rapidamente se aproximava do porto. Passamos pelos molhes de proteção e pelo Iacht Club Argentino antes de entrarmos nas águas abrigadas da Darsena Norte onde o Eladia Isabel atracou. Um grande veleiro antigo que parecia ter saído de algum livro de histórias de piratas e corsários dividia o espaço com modernos catamarãs que fazem travessias ultra-rápidas. Ao nosso redor, imensos prédios envidraçados não deixavam dúvidas: chegávamos em Buenos Aires.
Desembarcamos com nossas bicicletas e fomos passar pela alfândega. Tudo tão rápido e fácil que estranhamos. Em pouco tempo estávamos em frente a uma grande avenida. Saquei um mapa da cidade do alforje dianteiro e tratamos de nos localizar. Precisávamos seguir até a Avenida Brasil para encontrarmos o albergue. Às vezes empurrando, às vezes pedalando, chegamos à avenida e com facilidade encontramos o Albergue da Juventude de Buenos Aires. Logo após o registro e um bom banho decidimos sair para conhecer a cidade, seguindo diretamente até a Avenida 9 de Julio e seu famoso obelisco, onde paramos para fotografias. Caminhamos em uma rua somente para pedestres e fomos visitar lojas e livrarias. Rapidamente pudemos perceber o impacto da economia dolarizada em nossos bolsos: conseguimos encontrar um local que vendia o copo grande de refrigerante a US$ 0.50, o que foi um “achado” – considerando que o preço mínimo de um simples cafezinho era US$ 1.00!
Na quente tarde de verão paramos à sombra das árvores em uma praça e, de mapa em punho, procuramos um roteiro interessante para caminharmos. Tomamos um ônibus e fomos conhecer o aeroporto, muito bonito e organizado. Consegui material informativo sobre a Argentina e um bonito mapa do país. Meu pai resolveu pedir água mineral: um garçom com toalha branca no braço trouxe uma bandeja, guardanapos, lindos copos e a água mineral para três pessoas. Jacson e eu caímos na gargalhada – era melhor rir do que chorar! – quando chegou a conta: seis dólares!!! Depois desse verdadeiro assalto resolvemos voltar ao albergue – levando os guardanapos, é claro!
O retorno de ônibus nos reservou outra surpresa: na hora de pagar a passagem, onde estava o cobrador? Em seu lugar havia uma máquina que insistia em recusar as moedas colocadas pelo meu pai. O motorista, já indignado com os “bagunceiros”, parou em uma sinaleira, levantou-se da poltrona e foi nos ensinar como se fazia. Agradecemos e tratamos de descer nas proximidades do cais do porto. Esperávamos encontrar o veleiro antigo de três mastros que estava atracado quando chegamos mas, para a nossa surpresa, já havia zarpado. Fomos barrados ao tentarmos conhecer o Iacht Club de Buenos Aires e decidimos realmente que naquela tarde tudo conspirava contra nós. Para retornar ao albergue tomamos o Subte (metrô para os portenhos), o que não foi uma experiência muito agradável. Balançando de um lado para o outro, dava a legítima impressão de um autêntico metrô do Terceiro Mundo, onde a falta de manutenção parecia ser a regra e possível causa de um desastre iminente. Chegando na estação, descemos aliviados e alegramo-nos em poder ver novamente a luz do dia.
Caminhamos algumas quadras e voltamos ao albergue. Fui a um grande supermercado onde comprei alguns alimentos para a janta e material de higiene. Jantamos após um revigorante banho (depois de um quente dia de verão) e ficamos sabendo que estava sendo organizada uma confraternização entre alguns alberguistas. Havia, na pluralidade cultural que caracteriza esse interessante ambiente, cubanos, franceses, um finlandês branco como cera, um espanhol e um chileno, além de um japonês que não parava de sorrir. Apelidamos o local de “Albergue da Família Adams” por causa de algumas figuras estranhas (que pareciam ter saído de algum filme fantasmagórico) que perambulavam por lá em escadarias de madeira que estalavam e rangiam. Preferimos dormir em vez de jantarmos novamente e avisamos a portaria do albergue que sairíamos cedo, pois no dia seguinte pretendíamos conseguir sair daquela imensa metrópole de doze milhões de habitantes.
Décimo quarto dia (05/01/01 – sexta) – Buenos Aires a Carmen de Areco
Distância pedalada no dia: 150,73 km.
Distância total acumulada: 1495,16 km.
Tempo pedalado: 7 h 30 min 48 s.
Velocidade média: 20,0 km/h.
Velocidade máxima: 32,5 km/h.
Extraído do diário da viagem:
Fui acordado pelo pai às quatro horas da manhã, sem a menor vontade de levantar. Arrumei todas as coisas com dificuldade por causa do sono. Para começar mal o dia, tivemos que transportar as bicicletas montadas escada acima, uma tarefa bem difícil [devido ao peso das bicicletas carregadas para a viagem e à pouca largura da escada]. Isso porque, apesar de termos pedido, não deixaram a chave da porta da frente para a pessoa de plantão (do albergue). Outra reclamação com relação ao albergue foi a falta de respeito ao horário de silêncio (que parece que existe só no papel).
Saímos pedalando de madrugada com uma vaga idéia da direção em que deveríamos seguir. Paramos em alguns postos para tentar encher os pneus e a cada possibilidade íamos perguntando por onde chegaríamos à rodovia que procurávamos. O pavimento dessa parte de Buenos Aires era péssimo, cheio de buracos e remendos. Andamos mais ou menos 25 km até começarmos a sair da cidade. O pai parou em um posto para encher os pneus e, pouco depois, o pneu traseiro estourou com um enorme rasgão. A solução foi colocar o pneu de reserva (emprestado pelo Jacson) e uma nova câmara. Ao encher o pneu, a válvula simplesmente caiu fora (quebrou), separando-se da câmara. Jacson emprestou outra câmara e, ao enchermos novamente, tudo parecia bem. Quando o pai resolveu terminar de encher em uma máquina de um posto de gasolina, a válvula estava estragada. Felizmente havia uma loja de consertos de bicicletas nas proximidades e o pai conseguiu resolver os problemas.
Pelo relato do diário percebe-se que nem tudo são boas lembranças nesse tipo de viagem, mas os maus bocados são facilmente esquecidos quando surgem as grandes paisagens. À procura delas começamos a deixar Buenos Aires, seguindo inicialmente por uma “autopista” onde o trânsito de bicicletas era proibido. Em uma praça de pedágio encontramos a tão temida (ao menos no Brasil) “La Policia” que nos tratou muito bem e nos indicou o caminho a seguir. Continuamos por uma via auxiliar e logo encontramos vento contrário e extremamente quente. Aproveitando uma sombra proporcionada por uma passarela de pedestres, medi a temperatura ao nível do chão: 50 graus Celsius, o limite de meu termômetro!!! Pouco depois medi novamente, desta vez enquanto pedalava: 40o C! Superando os nossos próprios limites, continuamos a pedalar rumo ao nosso próximo objetivo: conhecer a Basílica de Nossa Senhora de Luján e escapar do sol na sombra que, de um modo ou de outro, viria dos céus!
Distância pedalada no dia, em Buenos Aires: 9,36 km.
Distância total acumulada: 1344,43 km.
Tempo pedalado: 47 min 40 s.
Velocidade média: 11,7 km/h.
Velocidade máxima: 31,5 km/h.
Confortavelmente instalados em cadeiras no deck do Eladia Isabel, víamos as luzes de Colonia del Sacramento diminuindo na distância até sumirem no imenso estuário do Rio da Prata. Cercados pelas águas, observando a esteira formada pelo deslocamento do navio, esperamos calmamente o dia amanhecer. Tínhamos bastante tempo para refletir sobre tudo o que já havíamos feito, relembrar os mais de mil e trezentos quilômetros que já havíamos percorrido somente com as forças de nossas próprias pernas, comandadas por nossa própria determinação. Seria muito mais fácil embarcar em um carro ou tomar um ônibus, poderiam afirmar alguns. A resposta seria simples, mas nenhuma palavra poderia descrevê-la melhor do que a própria realização. Conceber um projeto e torná-lo possível é uma experiência fantástica que excede muito as fronteiras de uma simples viagem. Foi assim, refletindo sobre a viagem e extasiados com a possibilidade de conhecer um novo país, que vimos um novo dia nascer sobre as águas do Rio da Prata.
Elevadores e até lojas haviam sido projetados e construídos dentro do navio. O Eladia Isabel transportava carros, caminhões e ônibus em seu compartimento-garagem inferior, enquanto os passageiros distribuíam-se em vários andares; alguns instalavam-se em poltronas ou em cadeiras, outros simplesmente escolhiam um canto e cochilavam. O deck do navio permitia a vista em várias direções e garantia uma brisa constante. À popa as margens do Uruguai há muito já haviam desaparecido quando os primeiros contornos de Buenos Aires se tornavam perceptíveis. Pouco a pouco essa imensa metrópole começava a se revelar. Uma excessiva quantidade de arranha-céus crescia diante de nossos olhos e ficamos nos perguntando como faríamos para encontrar o albergue em meio àquela floresta de edifícios, numa cidade cuja região metropolitana abriga cerca de doze milhões de pessoas.
O navio rapidamente se aproximava do porto. Passamos pelos molhes de proteção e pelo Iacht Club Argentino antes de entrarmos nas águas abrigadas da Darsena Norte onde o Eladia Isabel atracou. Um grande veleiro antigo que parecia ter saído de algum livro de histórias de piratas e corsários dividia o espaço com modernos catamarãs que fazem travessias ultra-rápidas. Ao nosso redor, imensos prédios envidraçados não deixavam dúvidas: chegávamos em Buenos Aires.
Desembarcamos com nossas bicicletas e fomos passar pela alfândega. Tudo tão rápido e fácil que estranhamos. Em pouco tempo estávamos em frente a uma grande avenida. Saquei um mapa da cidade do alforje dianteiro e tratamos de nos localizar. Precisávamos seguir até a Avenida Brasil para encontrarmos o albergue. Às vezes empurrando, às vezes pedalando, chegamos à avenida e com facilidade encontramos o Albergue da Juventude de Buenos Aires. Logo após o registro e um bom banho decidimos sair para conhecer a cidade, seguindo diretamente até a Avenida 9 de Julio e seu famoso obelisco, onde paramos para fotografias. Caminhamos em uma rua somente para pedestres e fomos visitar lojas e livrarias. Rapidamente pudemos perceber o impacto da economia dolarizada em nossos bolsos: conseguimos encontrar um local que vendia o copo grande de refrigerante a US$ 0.50, o que foi um “achado” – considerando que o preço mínimo de um simples cafezinho era US$ 1.00!
Na quente tarde de verão paramos à sombra das árvores em uma praça e, de mapa em punho, procuramos um roteiro interessante para caminharmos. Tomamos um ônibus e fomos conhecer o aeroporto, muito bonito e organizado. Consegui material informativo sobre a Argentina e um bonito mapa do país. Meu pai resolveu pedir água mineral: um garçom com toalha branca no braço trouxe uma bandeja, guardanapos, lindos copos e a água mineral para três pessoas. Jacson e eu caímos na gargalhada – era melhor rir do que chorar! – quando chegou a conta: seis dólares!!! Depois desse verdadeiro assalto resolvemos voltar ao albergue – levando os guardanapos, é claro!
O retorno de ônibus nos reservou outra surpresa: na hora de pagar a passagem, onde estava o cobrador? Em seu lugar havia uma máquina que insistia em recusar as moedas colocadas pelo meu pai. O motorista, já indignado com os “bagunceiros”, parou em uma sinaleira, levantou-se da poltrona e foi nos ensinar como se fazia. Agradecemos e tratamos de descer nas proximidades do cais do porto. Esperávamos encontrar o veleiro antigo de três mastros que estava atracado quando chegamos mas, para a nossa surpresa, já havia zarpado. Fomos barrados ao tentarmos conhecer o Iacht Club de Buenos Aires e decidimos realmente que naquela tarde tudo conspirava contra nós. Para retornar ao albergue tomamos o Subte (metrô para os portenhos), o que não foi uma experiência muito agradável. Balançando de um lado para o outro, dava a legítima impressão de um autêntico metrô do Terceiro Mundo, onde a falta de manutenção parecia ser a regra e possível causa de um desastre iminente. Chegando na estação, descemos aliviados e alegramo-nos em poder ver novamente a luz do dia.
Caminhamos algumas quadras e voltamos ao albergue. Fui a um grande supermercado onde comprei alguns alimentos para a janta e material de higiene. Jantamos após um revigorante banho (depois de um quente dia de verão) e ficamos sabendo que estava sendo organizada uma confraternização entre alguns alberguistas. Havia, na pluralidade cultural que caracteriza esse interessante ambiente, cubanos, franceses, um finlandês branco como cera, um espanhol e um chileno, além de um japonês que não parava de sorrir. Apelidamos o local de “Albergue da Família Adams” por causa de algumas figuras estranhas (que pareciam ter saído de algum filme fantasmagórico) que perambulavam por lá em escadarias de madeira que estalavam e rangiam. Preferimos dormir em vez de jantarmos novamente e avisamos a portaria do albergue que sairíamos cedo, pois no dia seguinte pretendíamos conseguir sair daquela imensa metrópole de doze milhões de habitantes.
Décimo quarto dia (05/01/01 – sexta) – Buenos Aires a Carmen de Areco
Distância pedalada no dia: 150,73 km.
Distância total acumulada: 1495,16 km.
Tempo pedalado: 7 h 30 min 48 s.
Velocidade média: 20,0 km/h.
Velocidade máxima: 32,5 km/h.
Extraído do diário da viagem:
Fui acordado pelo pai às quatro horas da manhã, sem a menor vontade de levantar. Arrumei todas as coisas com dificuldade por causa do sono. Para começar mal o dia, tivemos que transportar as bicicletas montadas escada acima, uma tarefa bem difícil [devido ao peso das bicicletas carregadas para a viagem e à pouca largura da escada]. Isso porque, apesar de termos pedido, não deixaram a chave da porta da frente para a pessoa de plantão (do albergue). Outra reclamação com relação ao albergue foi a falta de respeito ao horário de silêncio (que parece que existe só no papel).
Saímos pedalando de madrugada com uma vaga idéia da direção em que deveríamos seguir. Paramos em alguns postos para tentar encher os pneus e a cada possibilidade íamos perguntando por onde chegaríamos à rodovia que procurávamos. O pavimento dessa parte de Buenos Aires era péssimo, cheio de buracos e remendos. Andamos mais ou menos 25 km até começarmos a sair da cidade. O pai parou em um posto para encher os pneus e, pouco depois, o pneu traseiro estourou com um enorme rasgão. A solução foi colocar o pneu de reserva (emprestado pelo Jacson) e uma nova câmara. Ao encher o pneu, a válvula simplesmente caiu fora (quebrou), separando-se da câmara. Jacson emprestou outra câmara e, ao enchermos novamente, tudo parecia bem. Quando o pai resolveu terminar de encher em uma máquina de um posto de gasolina, a válvula estava estragada. Felizmente havia uma loja de consertos de bicicletas nas proximidades e o pai conseguiu resolver os problemas.
Pelo relato do diário percebe-se que nem tudo são boas lembranças nesse tipo de viagem, mas os maus bocados são facilmente esquecidos quando surgem as grandes paisagens. À procura delas começamos a deixar Buenos Aires, seguindo inicialmente por uma “autopista” onde o trânsito de bicicletas era proibido. Em uma praça de pedágio encontramos a tão temida (ao menos no Brasil) “La Policia” que nos tratou muito bem e nos indicou o caminho a seguir. Continuamos por uma via auxiliar e logo encontramos vento contrário e extremamente quente. Aproveitando uma sombra proporcionada por uma passarela de pedestres, medi a temperatura ao nível do chão: 50 graus Celsius, o limite de meu termômetro!!! Pouco depois medi novamente, desta vez enquanto pedalava: 40o C! Superando os nossos próprios limites, continuamos a pedalar rumo ao nosso próximo objetivo: conhecer a Basílica de Nossa Senhora de Luján e escapar do sol na sombra que, de um modo ou de outro, viria dos céus!
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