Monday, February 12, 2007

De bicicleta pelo Cone Sul - décimo capítulo


Egon, Jacson e eu pedalávamos sob o sol escaldante torcendo para que não demorássemos muito a chegar em Luján. A cidade surgiu devido a uma interessante história que vale a pena conhecer: em 1960, um vagão contendo uma pintura da virgem, vindo do Brasil e seguindo para uma fazenda portuguesa, não prosseguia viagem enquanto os gaúchos (daquelas paragens) não removessem a pintura. Os fiéis ergueram então uma capela onde a virgem havia “escolhido ficar”, a aproximadamente 5 km de onde está a cidade. A virgem recebeu o nome mais pomposo de La Virgen de Luján e hoje encontra-se na grandiosa Basílica de Luján, em estilo gótico francês. Todo o ano cerca de quatro milhões de peregrinos visitam Luján para homenagear a virgem por suas intercessões em questões de paz, saúde, amor e consolação. Em outubro acontece uma peregrinação desde Buenos Aires, a 62 km, uma jornada que dura cerca de 18 horas. Nos dias passados de ditadura militar, em que qualquer manifestação de massa era proibida, essa caminhada tinha uma tremenda importância simbólica, mas desde que a democracia foi restaurada no país, a procissão de fiéis tem um caráter muito mais devocional. Outra data importante em que ocorre grande afluência de devotos é oito de maio, dia da virgem.
Logo nas proximidades da cidade facilmente avistamos as torres da basílica, com 106 metros de altura, e fomos conhecê-la. Jacson preferiu ficar descansando na sombra das árvores, do lado de fora. Nas proximidades vários “camelôs espirituais” vendiam tudo o que era possível relacionar com a tal senhora que deveria mesmo ser santa pois, mesmo depois de falecida, com toda a certeza os ajudava a sobreviver! Uma placa proibia o recolhimento de esmolas, mas no interior várias caixas pediam donativos para a santa obra. A concorrência deveria ser grande! Comentários irônicos à parte, trata-se de uma igreja muito interessante, com detalhes ricamente trabalhados em seu interior. Dentro da basílica placas homenageiam as famílias que fizeram as doações (e puderam receber o status) para que a obra fosse realizada. Na saída várias crianças pediram moedas, mas não souberam se satisfazer com centavos – queriam pesos! Com a cotação de um peso para um dólar, tratamos de voltar a colocar o pé na estrada e, apesar do cansaço de Jacson, decidimos pedalar até Carmen de Areco, onde provavelmente poderíamos encontrar um camping.
A luz do sol pouco a pouco diminuía de intensidade, anunciando mais um belo final de tarde. Em um pedágio ganhamos água gelada e uma garrafa de água congelada que nos garantiu uma boa reserva para enfrentar os quilômetros que ainda faltavam. Apesar de até então não termos encontrado grandes problemas de trânsito no caminho, nesta tarde fui tirado da pista por um caminhão que era ultrapassado por outro. A estrada não tinha acostamento, mas uma grande área de escape gramada. Felizmente não encontrei nenhum buraco pela frente, que poderia ter comprometido a estrutura da bicicleta (com todo o peso das bagagens), teria provocado um belo furo nos pneus e talvez um aro entortado (o que seria realmente grave). Mas tudo correu bem, o susto passou e as belas paisagens voltaram a dominar a cena onde campos dourados concorriam com plantações de girassol.
Chegando em Carmen de Areco, parei em uma Estación de Servicio (posto de gasolina) para pedir informações sobre camping. Acabei recebendo um convite para ficarmos acampados no ACA – Automóvil Club Argentino – e utilizar suas instalações. Eu havia pedalado na frente, pois Jacson reclamara do ritmo muito forte; quando meu pai e Jacson chegaram, já tínhamos chuveiro quente à disposição. Montamos acampamento e após um merecido banho aproveitamos a comodidade que o restaurante do posto proporcionava para saborearmos um bife à milanesa com fritas. Fomos nos recolher para descansar debaixo de um belo céu estrelado.

Décimo quinto dia (06/01/01 – sábado) – Carmen de Areco a Chacabuco

Distância pedalada no dia: 79,06 km.
Distância total acumulada: 1574,23 km.
Tempo pedalado: 3 h 55 min 30 s.
Velocidade média: 20,1 km/h.
Velocidade máxima: 31,0 km/h.

Após duas semanas de estrada, nessa manhã de sábado resolvemos dormir um pouco mais e aproveitamos para tomar um bom café com leite e comer pão com manteiga e mel no posto de gasolina. Relatei no diário que as instalações dos postos de gasolina por aqui são muito boas, com tudo funcionando, em ordem e limpo. Uma beleza.
Saímos bem devagar para deixar Jacson tomar a dianteira, na esperança de que essa estratégia servisse para incentivá-lo a pedalar em um ritmo um pouco mais forte. Mas não obtivemos a resposta esperada e a velocidade foi bastante baixa, apesar do dia nublado e do vento lateral (às vezes levemente favorável). Nesse tipo de viagem o entrosamento entre os integrantes pode ser fundamental para o sucesso da empreitada; diferenças de performance muito grandes acabam por desagradar os participantes – um por se sentir incapaz de acompanhar os demais e outro por não poder pedalar em um ritmo mais forte, como gostaria. Essa questão é importante mas dificilmente pode ser avaliada durante o planejamento, antes da saída, se não forem feitos eventos preparatórios onde se possa testar a capacidade física e o entrosamento entre os potenciais participantes. Em nosso caso, havíamos pedalado somente em uma ocasião, durante a realização de um projeto Pedalando Nova Petrópolis. Felizmente não fomos seriamente afetados pela falta de entrosamento a ponto de formarmos dois grupos distintos, mas poderíamos ter conversado a respeito do desenvolvimento da pedalada muito antes de enfrentarmos problemas.
Paramos na hora do almoço em um armazém para descansarmos e tomamos leite gelado e água. Após a parada tomei novamente a dianteira até a cidade de Chacabuco, um pouco preocupado com uma grande formação de nuvens que parecia estar se transformando em um temporal. Em um posto de gasolina comprei um refrigerante e esperei pelos companheiros de viagem. Ao chegarem, ficamos novamente muito tempo parados para descansar. Combinamos que seguiríamos até a cidade de Junín ainda naquele dia.
O tempo, no entanto, nem sempre colabora conosco. As nuvens que prometiam temporal realmente se agruparam e, em pouco tempo, os primeiros raios começaram a dar sinal de que teríamos mau tempo pela frente. Encostei a bicicleta em frente a uma propriedade e comecei a ensacar o material que não estava preparado para a chuva. Um rapaz estava nas proximidades e prontamente ofereceu uma límpida e refrescante água de poço. Foi assim que travamos o primeiro contato com Éber e seu pai, proprietário da fazenda onde eram cultivados cereais e criadas algumas vacas. Junto com os primeiros pingos grossos de chuva recebemos convite para guardarmos as bicicletas em um pequeno depósito, pois havia perigo de granizo. Éber também gostava de ciclismo, mas havia parado de treinar para competições quando percebeu que só teria chances de competir com os ciclistas de ponta quando também se utilizasse de anabolizantes e outras substâncias dopantes – o que infelizmente é comum no ciclismo competitivo de alto nível. Quando a chuvarada começou fomos “invitados” a entrar na casa; prontamente aceitamos o convite para tomar um belo chimarrão. O vento aumentou bastante de intensidade e a energia elétrica foi interrompida. Conversamos bastante e pudemos concluir que a situação geral dos países da América do Sul é muito semelhante (e deprimente), embora o Chile pareça ser um caso à parte. Nessa conversa nos chamou bastante a atenção o fato de Éber e seu pai conhecerem bastante o seu país – fornecendo informações sobre o nível de desemprego, política e economia. Concluímos que na Argentina, assim como no Brasil, a “politicagem” parece ser um grande problema. Além de política, conversamos também sobre o tipo de atividade desenvolvida na região. A agricultura é predominante, juntamente com a pecuária. Eles nos surpreenderam ao comentar acerca da quantidade de chuva em milímetros, pois no Brasil sempre estávamos acostumados a ouvir que “choveu pouco” ou “choveu muito”. Quase todos os agricultores uruguaios monitoram constantemente a chuva com pluviômetros e têm noção exata da quantidade de chuva que é normal para cada período. Ao longo da conversa percebemos que o tempo se manteria em péssimas condições ainda por algumas horas, senão até o dia seguinte. O galpão onde estavam as bicicletas foi colocado à nossa disposição se quiséssemos pernoitar. Poderíamos instalar os sacos de dormir entre utensílios para a lida no campo e sacos de soja. Não precisaríamos nem montar acampamento. Foi o que fizemos.
No final da tarde a chuva deu uma trégua e aproveitamos para nos deliciar comendo doces “siruelas” (ameixas). Ganhamos um pedaço de pão com presunto que, juntamente com as siruelas, foi nossa janta. A última claridade amarelada na direção do poente ainda permitiu a atualização do diário de viagem antes de cairmos no sono. Naquele momento, jamais poderíamos imaginar que no dia seguinte encontraríamos um grande companheiro de viagem...

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