Décimo terceiro dia (04/01/01 – quinta) – De Colonia a Buenos Aires de navio
Distância pedalada no dia, em Buenos Aires: 9,36 km.
Distância total acumulada: 1344,43 km.
Tempo pedalado: 47 min 40 s.
Velocidade média: 11,7 km/h.
Velocidade máxima: 31,5 km/h.
Confortavelmente instalados em cadeiras no deck do Eladia Isabel, víamos as luzes de Colonia del Sacramento diminuindo na distância até sumirem no imenso estuário do Rio da Prata. Cercados pelas águas, observando a esteira formada pelo deslocamento do navio, esperamos calmamente o dia amanhecer. Tínhamos bastante tempo para refletir sobre tudo o que já havíamos feito, relembrar os mais de mil e trezentos quilômetros que já havíamos percorrido somente com as forças de nossas próprias pernas, comandadas por nossa própria determinação. Seria muito mais fácil embarcar em um carro ou tomar um ônibus, poderiam afirmar alguns. A resposta seria simples, mas nenhuma palavra poderia descrevê-la melhor do que a própria realização. Conceber um projeto e torná-lo possível é uma experiência fantástica que excede muito as fronteiras de uma simples viagem. Foi assim, refletindo sobre a viagem e extasiados com a possibilidade de conhecer um novo país, que vimos um novo dia nascer sobre as águas do Rio da Prata.
Elevadores e até lojas haviam sido projetados e construídos dentro do navio. O Eladia Isabel transportava carros, caminhões e ônibus em seu compartimento-garagem inferior, enquanto os passageiros distribuíam-se em vários andares; alguns instalavam-se em poltronas ou em cadeiras, outros simplesmente escolhiam um canto e cochilavam. O deck do navio permitia a vista em várias direções e garantia uma brisa constante. À popa as margens do Uruguai há muito já haviam desaparecido quando os primeiros contornos de Buenos Aires se tornavam perceptíveis. Pouco a pouco essa imensa metrópole começava a se revelar. Uma excessiva quantidade de arranha-céus crescia diante de nossos olhos e ficamos nos perguntando como faríamos para encontrar o albergue em meio àquela floresta de edifícios, numa cidade cuja região metropolitana abriga cerca de doze milhões de pessoas.
O navio rapidamente se aproximava do porto. Passamos pelos molhes de proteção e pelo Iacht Club Argentino antes de entrarmos nas águas abrigadas da Darsena Norte onde o Eladia Isabel atracou. Um grande veleiro antigo que parecia ter saído de algum livro de histórias de piratas e corsários dividia o espaço com modernos catamarãs que fazem travessias ultra-rápidas. Ao nosso redor, imensos prédios envidraçados não deixavam dúvidas: chegávamos em Buenos Aires.
Desembarcamos com nossas bicicletas e fomos passar pela alfândega. Tudo tão rápido e fácil que estranhamos. Em pouco tempo estávamos em frente a uma grande avenida. Saquei um mapa da cidade do alforje dianteiro e tratamos de nos localizar. Precisávamos seguir até a Avenida Brasil para encontrarmos o albergue. Às vezes empurrando, às vezes pedalando, chegamos à avenida e com facilidade encontramos o Albergue da Juventude de Buenos Aires. Logo após o registro e um bom banho decidimos sair para conhecer a cidade, seguindo diretamente até a Avenida 9 de Julio e seu famoso obelisco, onde paramos para fotografias. Caminhamos em uma rua somente para pedestres e fomos visitar lojas e livrarias. Rapidamente pudemos perceber o impacto da economia dolarizada em nossos bolsos: conseguimos encontrar um local que vendia o copo grande de refrigerante a US$ 0.50, o que foi um “achado” – considerando que o preço mínimo de um simples cafezinho era US$ 1.00!
Na quente tarde de verão paramos à sombra das árvores em uma praça e, de mapa em punho, procuramos um roteiro interessante para caminharmos. Tomamos um ônibus e fomos conhecer o aeroporto, muito bonito e organizado. Consegui material informativo sobre a Argentina e um bonito mapa do país. Meu pai resolveu pedir água mineral: um garçom com toalha branca no braço trouxe uma bandeja, guardanapos, lindos copos e a água mineral para três pessoas. Jacson e eu caímos na gargalhada – era melhor rir do que chorar! – quando chegou a conta: seis dólares!!! Depois desse verdadeiro assalto resolvemos voltar ao albergue – levando os guardanapos, é claro!
O retorno de ônibus nos reservou outra surpresa: na hora de pagar a passagem, onde estava o cobrador? Em seu lugar havia uma máquina que insistia em recusar as moedas colocadas pelo meu pai. O motorista, já indignado com os “bagunceiros”, parou em uma sinaleira, levantou-se da poltrona e foi nos ensinar como se fazia. Agradecemos e tratamos de descer nas proximidades do cais do porto. Esperávamos encontrar o veleiro antigo de três mastros que estava atracado quando chegamos mas, para a nossa surpresa, já havia zarpado. Fomos barrados ao tentarmos conhecer o Iacht Club de Buenos Aires e decidimos realmente que naquela tarde tudo conspirava contra nós. Para retornar ao albergue tomamos o Subte (metrô para os portenhos), o que não foi uma experiência muito agradável. Balançando de um lado para o outro, dava a legítima impressão de um autêntico metrô do Terceiro Mundo, onde a falta de manutenção parecia ser a regra e possível causa de um desastre iminente. Chegando na estação, descemos aliviados e alegramo-nos em poder ver novamente a luz do dia.
Caminhamos algumas quadras e voltamos ao albergue. Fui a um grande supermercado onde comprei alguns alimentos para a janta e material de higiene. Jantamos após um revigorante banho (depois de um quente dia de verão) e ficamos sabendo que estava sendo organizada uma confraternização entre alguns alberguistas. Havia, na pluralidade cultural que caracteriza esse interessante ambiente, cubanos, franceses, um finlandês branco como cera, um espanhol e um chileno, além de um japonês que não parava de sorrir. Apelidamos o local de “Albergue da Família Adams” por causa de algumas figuras estranhas (que pareciam ter saído de algum filme fantasmagórico) que perambulavam por lá em escadarias de madeira que estalavam e rangiam. Preferimos dormir em vez de jantarmos novamente e avisamos a portaria do albergue que sairíamos cedo, pois no dia seguinte pretendíamos conseguir sair daquela imensa metrópole de doze milhões de habitantes.
Décimo quarto dia (05/01/01 – sexta) – Buenos Aires a Carmen de Areco
Distância pedalada no dia: 150,73 km.
Distância total acumulada: 1495,16 km.
Tempo pedalado: 7 h 30 min 48 s.
Velocidade média: 20,0 km/h.
Velocidade máxima: 32,5 km/h.
Extraído do diário da viagem:
Fui acordado pelo pai às quatro horas da manhã, sem a menor vontade de levantar. Arrumei todas as coisas com dificuldade por causa do sono. Para começar mal o dia, tivemos que transportar as bicicletas montadas escada acima, uma tarefa bem difícil [devido ao peso das bicicletas carregadas para a viagem e à pouca largura da escada]. Isso porque, apesar de termos pedido, não deixaram a chave da porta da frente para a pessoa de plantão (do albergue). Outra reclamação com relação ao albergue foi a falta de respeito ao horário de silêncio (que parece que existe só no papel).
Saímos pedalando de madrugada com uma vaga idéia da direção em que deveríamos seguir. Paramos em alguns postos para tentar encher os pneus e a cada possibilidade íamos perguntando por onde chegaríamos à rodovia que procurávamos. O pavimento dessa parte de Buenos Aires era péssimo, cheio de buracos e remendos. Andamos mais ou menos 25 km até começarmos a sair da cidade. O pai parou em um posto para encher os pneus e, pouco depois, o pneu traseiro estourou com um enorme rasgão. A solução foi colocar o pneu de reserva (emprestado pelo Jacson) e uma nova câmara. Ao encher o pneu, a válvula simplesmente caiu fora (quebrou), separando-se da câmara. Jacson emprestou outra câmara e, ao enchermos novamente, tudo parecia bem. Quando o pai resolveu terminar de encher em uma máquina de um posto de gasolina, a válvula estava estragada. Felizmente havia uma loja de consertos de bicicletas nas proximidades e o pai conseguiu resolver os problemas.
Pelo relato do diário percebe-se que nem tudo são boas lembranças nesse tipo de viagem, mas os maus bocados são facilmente esquecidos quando surgem as grandes paisagens. À procura delas começamos a deixar Buenos Aires, seguindo inicialmente por uma “autopista” onde o trânsito de bicicletas era proibido. Em uma praça de pedágio encontramos a tão temida (ao menos no Brasil) “La Policia” que nos tratou muito bem e nos indicou o caminho a seguir. Continuamos por uma via auxiliar e logo encontramos vento contrário e extremamente quente. Aproveitando uma sombra proporcionada por uma passarela de pedestres, medi a temperatura ao nível do chão: 50 graus Celsius, o limite de meu termômetro!!! Pouco depois medi novamente, desta vez enquanto pedalava: 40o C! Superando os nossos próprios limites, continuamos a pedalar rumo ao nosso próximo objetivo: conhecer a Basílica de Nossa Senhora de Luján e escapar do sol na sombra que, de um modo ou de outro, viria dos céus!
Distância pedalada no dia, em Buenos Aires: 9,36 km.
Distância total acumulada: 1344,43 km.
Tempo pedalado: 47 min 40 s.
Velocidade média: 11,7 km/h.
Velocidade máxima: 31,5 km/h.
Confortavelmente instalados em cadeiras no deck do Eladia Isabel, víamos as luzes de Colonia del Sacramento diminuindo na distância até sumirem no imenso estuário do Rio da Prata. Cercados pelas águas, observando a esteira formada pelo deslocamento do navio, esperamos calmamente o dia amanhecer. Tínhamos bastante tempo para refletir sobre tudo o que já havíamos feito, relembrar os mais de mil e trezentos quilômetros que já havíamos percorrido somente com as forças de nossas próprias pernas, comandadas por nossa própria determinação. Seria muito mais fácil embarcar em um carro ou tomar um ônibus, poderiam afirmar alguns. A resposta seria simples, mas nenhuma palavra poderia descrevê-la melhor do que a própria realização. Conceber um projeto e torná-lo possível é uma experiência fantástica que excede muito as fronteiras de uma simples viagem. Foi assim, refletindo sobre a viagem e extasiados com a possibilidade de conhecer um novo país, que vimos um novo dia nascer sobre as águas do Rio da Prata.
Elevadores e até lojas haviam sido projetados e construídos dentro do navio. O Eladia Isabel transportava carros, caminhões e ônibus em seu compartimento-garagem inferior, enquanto os passageiros distribuíam-se em vários andares; alguns instalavam-se em poltronas ou em cadeiras, outros simplesmente escolhiam um canto e cochilavam. O deck do navio permitia a vista em várias direções e garantia uma brisa constante. À popa as margens do Uruguai há muito já haviam desaparecido quando os primeiros contornos de Buenos Aires se tornavam perceptíveis. Pouco a pouco essa imensa metrópole começava a se revelar. Uma excessiva quantidade de arranha-céus crescia diante de nossos olhos e ficamos nos perguntando como faríamos para encontrar o albergue em meio àquela floresta de edifícios, numa cidade cuja região metropolitana abriga cerca de doze milhões de pessoas.
O navio rapidamente se aproximava do porto. Passamos pelos molhes de proteção e pelo Iacht Club Argentino antes de entrarmos nas águas abrigadas da Darsena Norte onde o Eladia Isabel atracou. Um grande veleiro antigo que parecia ter saído de algum livro de histórias de piratas e corsários dividia o espaço com modernos catamarãs que fazem travessias ultra-rápidas. Ao nosso redor, imensos prédios envidraçados não deixavam dúvidas: chegávamos em Buenos Aires.
Desembarcamos com nossas bicicletas e fomos passar pela alfândega. Tudo tão rápido e fácil que estranhamos. Em pouco tempo estávamos em frente a uma grande avenida. Saquei um mapa da cidade do alforje dianteiro e tratamos de nos localizar. Precisávamos seguir até a Avenida Brasil para encontrarmos o albergue. Às vezes empurrando, às vezes pedalando, chegamos à avenida e com facilidade encontramos o Albergue da Juventude de Buenos Aires. Logo após o registro e um bom banho decidimos sair para conhecer a cidade, seguindo diretamente até a Avenida 9 de Julio e seu famoso obelisco, onde paramos para fotografias. Caminhamos em uma rua somente para pedestres e fomos visitar lojas e livrarias. Rapidamente pudemos perceber o impacto da economia dolarizada em nossos bolsos: conseguimos encontrar um local que vendia o copo grande de refrigerante a US$ 0.50, o que foi um “achado” – considerando que o preço mínimo de um simples cafezinho era US$ 1.00!
Na quente tarde de verão paramos à sombra das árvores em uma praça e, de mapa em punho, procuramos um roteiro interessante para caminharmos. Tomamos um ônibus e fomos conhecer o aeroporto, muito bonito e organizado. Consegui material informativo sobre a Argentina e um bonito mapa do país. Meu pai resolveu pedir água mineral: um garçom com toalha branca no braço trouxe uma bandeja, guardanapos, lindos copos e a água mineral para três pessoas. Jacson e eu caímos na gargalhada – era melhor rir do que chorar! – quando chegou a conta: seis dólares!!! Depois desse verdadeiro assalto resolvemos voltar ao albergue – levando os guardanapos, é claro!
O retorno de ônibus nos reservou outra surpresa: na hora de pagar a passagem, onde estava o cobrador? Em seu lugar havia uma máquina que insistia em recusar as moedas colocadas pelo meu pai. O motorista, já indignado com os “bagunceiros”, parou em uma sinaleira, levantou-se da poltrona e foi nos ensinar como se fazia. Agradecemos e tratamos de descer nas proximidades do cais do porto. Esperávamos encontrar o veleiro antigo de três mastros que estava atracado quando chegamos mas, para a nossa surpresa, já havia zarpado. Fomos barrados ao tentarmos conhecer o Iacht Club de Buenos Aires e decidimos realmente que naquela tarde tudo conspirava contra nós. Para retornar ao albergue tomamos o Subte (metrô para os portenhos), o que não foi uma experiência muito agradável. Balançando de um lado para o outro, dava a legítima impressão de um autêntico metrô do Terceiro Mundo, onde a falta de manutenção parecia ser a regra e possível causa de um desastre iminente. Chegando na estação, descemos aliviados e alegramo-nos em poder ver novamente a luz do dia.
Caminhamos algumas quadras e voltamos ao albergue. Fui a um grande supermercado onde comprei alguns alimentos para a janta e material de higiene. Jantamos após um revigorante banho (depois de um quente dia de verão) e ficamos sabendo que estava sendo organizada uma confraternização entre alguns alberguistas. Havia, na pluralidade cultural que caracteriza esse interessante ambiente, cubanos, franceses, um finlandês branco como cera, um espanhol e um chileno, além de um japonês que não parava de sorrir. Apelidamos o local de “Albergue da Família Adams” por causa de algumas figuras estranhas (que pareciam ter saído de algum filme fantasmagórico) que perambulavam por lá em escadarias de madeira que estalavam e rangiam. Preferimos dormir em vez de jantarmos novamente e avisamos a portaria do albergue que sairíamos cedo, pois no dia seguinte pretendíamos conseguir sair daquela imensa metrópole de doze milhões de habitantes.
Décimo quarto dia (05/01/01 – sexta) – Buenos Aires a Carmen de Areco
Distância pedalada no dia: 150,73 km.
Distância total acumulada: 1495,16 km.
Tempo pedalado: 7 h 30 min 48 s.
Velocidade média: 20,0 km/h.
Velocidade máxima: 32,5 km/h.
Extraído do diário da viagem:
Fui acordado pelo pai às quatro horas da manhã, sem a menor vontade de levantar. Arrumei todas as coisas com dificuldade por causa do sono. Para começar mal o dia, tivemos que transportar as bicicletas montadas escada acima, uma tarefa bem difícil [devido ao peso das bicicletas carregadas para a viagem e à pouca largura da escada]. Isso porque, apesar de termos pedido, não deixaram a chave da porta da frente para a pessoa de plantão (do albergue). Outra reclamação com relação ao albergue foi a falta de respeito ao horário de silêncio (que parece que existe só no papel).
Saímos pedalando de madrugada com uma vaga idéia da direção em que deveríamos seguir. Paramos em alguns postos para tentar encher os pneus e a cada possibilidade íamos perguntando por onde chegaríamos à rodovia que procurávamos. O pavimento dessa parte de Buenos Aires era péssimo, cheio de buracos e remendos. Andamos mais ou menos 25 km até começarmos a sair da cidade. O pai parou em um posto para encher os pneus e, pouco depois, o pneu traseiro estourou com um enorme rasgão. A solução foi colocar o pneu de reserva (emprestado pelo Jacson) e uma nova câmara. Ao encher o pneu, a válvula simplesmente caiu fora (quebrou), separando-se da câmara. Jacson emprestou outra câmara e, ao enchermos novamente, tudo parecia bem. Quando o pai resolveu terminar de encher em uma máquina de um posto de gasolina, a válvula estava estragada. Felizmente havia uma loja de consertos de bicicletas nas proximidades e o pai conseguiu resolver os problemas.
Pelo relato do diário percebe-se que nem tudo são boas lembranças nesse tipo de viagem, mas os maus bocados são facilmente esquecidos quando surgem as grandes paisagens. À procura delas começamos a deixar Buenos Aires, seguindo inicialmente por uma “autopista” onde o trânsito de bicicletas era proibido. Em uma praça de pedágio encontramos a tão temida (ao menos no Brasil) “La Policia” que nos tratou muito bem e nos indicou o caminho a seguir. Continuamos por uma via auxiliar e logo encontramos vento contrário e extremamente quente. Aproveitando uma sombra proporcionada por uma passarela de pedestres, medi a temperatura ao nível do chão: 50 graus Celsius, o limite de meu termômetro!!! Pouco depois medi novamente, desta vez enquanto pedalava: 40o C! Superando os nossos próprios limites, continuamos a pedalar rumo ao nosso próximo objetivo: conhecer a Basílica de Nossa Senhora de Luján e escapar do sol na sombra que, de um modo ou de outro, viria dos céus!
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