Remada de Inverno
“Dizem que Deus, quando desenhou
o litoral brasileiro, começou no Norte e foi descendo para o Sul. Foi muito
generoso, criando lugares paradisíacos com baías, enseadas e ilhas. Quando
chegou ao Estado do Rio Grande do Sul, o último, estava cansado e fez uma linha
reta...”
Essa é uma anedota contada com
regularidade quando analisamos a geografia do Brasil. O litoral de nosso Estado
é praticamente uma linha reta, uma única praia com 622 km de extensão com
poucas interrupções. Em sua parte Norte a planície litorânea, localizada nas
proximidades do paralelo 30 graus Sul, é espremida entre o cordão arenoso do
Oceano Atlântico e a serra, que chega a mais de mil metros de altitude. Nessa
planície há uma diversidade de mais de quarenta lagoas, abastecidas pela água
que vem do alto da serra e muitas delas interligadas por canais, desembocando
em um ponto único no oceano.
A ocupação humana ainda
concentra-se em cidades nas praias, na orla oceânica, e em algumas cidades da
região, de maneira que o entorno das lagoas basicamente constitui-se por
propriedades particulares de lazer e fazendas para agricultura e criação de
gado.
O clima dessa região Sul do
Brasil sofre muita variação, chegando a temperaturas negativas durante as
passagens de frentes frias no Inverno e passando dos trinta graus Celsius no
calor do Verão.
A canoagem recreativa utilizando
caiaques oceânicos está apenas começando no Brasil, com poucos praticantes,
algo inexplicável em um país com mais de oito mil quilômetros de litoral e uma
infinidade de rios para remar. A oferta de equipamentos reflete essa realidade
e ainda é muito limitada.
Nesse contexto é que tivemos a
ideia de juntar um grupo de amigos que gostam de remar e procuramos estimular o
desenvolvimento dessa atividade tão salutar em contato com a natureza. Se no
Inverno as condições são mais desestimulantes para a prática da canoagem, por
outro lado os turistas, pescadores, caçadores e lancheiros também ficam em
casa, deixando os animais e plantas ficarem mais à vontade e se recuperarem no
ambiente natural, estimulando as atividades de contemplação da natureza. Essa é
uma das características da Remada de Inverno, que procura estimular a
integração entre amigos remadores através de uma atividade cooperativa e
colaborativa, sem veículos de apoio – afinal, temos caiaques oceânicos com
plena capacidade de carga e autonomia – e sem qualquer caráter competitivo. Não
há pagamento de taxas de inscrição nem qualquer vínculo comercial, é
essencialmente uma remada de dois dias entre amigos, algo um tanto raro nos
eventos envolvendo atividades na natureza.
A Remada de Inverno teve sua
primeira edição no ano 2011, a segunda ocorreu em 2012 e a terceira em 2013.
Nessas três oportunidades o trajeto essencialmente se manteve entre as cidades
de Maquiné e Osório e foi adaptado de acordo com as condições ambientais
encontradas. O vento é o principal fator limitante e que orienta as tomadas de
decisão sobre o trajeto, já que a região é uma planície exposta onde as lagoas
têm baixa profundidade e não sofrem ação de marés. Na primeira edição houve
muita chuva nos dias precedentes à remada, de modo que as lagoas estavam cheias
e os canais com correnteza e água bem acima do leito normal; o vento oscilou
completamente, do quadrante Sul para o quadrante Norte. Na terceira edição esse
mesmo vento Sul foi fator decisivo para modificarmos o planejamento inicial.
Remada de Inverno 2013
O planejamento inicial da remada
previa a saída para a Lagoa do Peixoto, em Osório, passando pelas lagoas da
Pinguela, Palmital, Malvas, Canal do João Pedro e acampamento em uma belíssima
praia com árvores frondosas na Lagoa dos Quadros. No segundo dia remaríamos
pela Lagoa dos Quadros e rio Maquiné.
Reunimo-nos no ponto de partida
na cidade de Osório em um dia frio e muito ventoso por conta da passagem de uma
frente fria. A velocidade do vento, medida com anemômetro, chegava a 68 km/h
nas rajadas. Teríamos várias áreas bastante expostas no trajeto estabelecido,
de maneira que partimos para uma segunda opção que contemplasse uma remada mais
curta e abrigada do vento. Deslocamo-nos para o Recanto, em Maquiné, onde
poderíamos iniciar pelo rio e remar na margem abrigada da Lagoa dos Quadros.
Mesmo remando em águas bem menos
expostas ao vento, um caiaque simples e um duplo foram capotados pelo vento na
região onde o rio encontra a lagoa, sem maiores consequências. Remamos para uma
praia muito bonita com árvores frondosas e um excepcional local para
acampamento, montado sob o sol radiante de um belo dia. Os caiaques ainda
carregados foram transportados com a cooperação de todos e lentamente a
confusão de equipamentos para remar, equipamentos de cozinha, barracas, sacos
de dormir e alimentos foi sendo organizada, em clima alegre e descontraído que
é característica da Remada de Inverno. Doze caiaques de catorze remadores foram
colocados lado a lado, roupas e equipamentos molhados foram colocados para
secar ao vento e sol, em um varal coletivo.
Aproveitamos a bela tarde para
conversar, trocar ideias sobre caiaques e viagens, alguns descansavam e outros
já começavam a se movimentar para coletar galhos secos para uma fogueira. Nas
remadas procuramos seguir os princípios de mínimo impacto, levando de volta
todo o lixo produzido e inclusive recolhendo o que encontramos pelo caminho. Particularmente
nas remadas com acampamento em clima frio a fogueira faz parte como um elemento
de agregação, trazendo calor, aconchego e fonte de energia para preparar a
janta coletiva. Também faz parte da cultura do homem do campo e por
consequência um pouco de nossa própria cultura, mesmo nos dias atuais. O
impacto decorrente dessa ação no ambiente ainda é mínimo, considerando que
somos poucos praticantes e que são poucas as remadas com essa característica ao
longo de um ano. Em muito pouco tempo as marcas da fogueira são completamente
apagadas.
O jantar é coletivo, cada pessoa
contribui com comida e bebida e o cardápio mais apreciado é churrasco
acompanhado por vinho. O céu estrelado e límpido pelo ar frio do Inverno é
espetacular, e em 2013 programamos a remada para que ocorresse em noite de lua
cheia. A Lua estava na sua menor distância da terra, fenômeno conhecido por
Superlua – era possível até ler um livro somente com a luz do luar! Após
decisão sobre as atividades para o dia seguinte e divertida confraternização
noturna, todos foram para suas barracas descansar.
No dia seguinte o sol foi
lentamente colorindo algumas poucas nuvens. O vento forte da véspera
desaparecera completamente e a água estava espelhada. Pouco a pouco todos foram
saindo de suas barracas e iniciando as atividades para o café da manhã e
posteriormente para a desmontagem do acampamento. Mais uma vez a colorida
confusão de equipamentos diversos foi sendo organizada e ao final tudo sumiu
para dentro dos compartimentos estanques dos caiaques. Nesse dia contamos com a
participação de mais um amigo, totabilizando quinze remadores em treze
caiaques.
Com água espelhada saímos remando
em direção a grandes dunas de areia na margem Leste da Lagoa dos Quadros. Nos
pés das dunas desembarcamos, subindo para contemplarmos a bela paisagem
litorânea. Enxergávamos a lagoa, agora calma, bem ao longe uma pequena ilha
(para onde rumaríamos em seguida) e, recortando o horizonte, a bela serra
chegando aos mil metros de altitude.
Retornando aos caiaques, marcamos
rumo direto para a ilha rochosa, fazendo uma travessia de nove quilômetros em
águas completamente calmas apenas perturbadas por uma leve brisa que
transformou a superfície espelhada da água em um tapete líquido. Chegando à
ilha, acomodamo-nos sobre as pedras para almoçar.
Durante o almoço o vento
retornou, mas em intensidade bem menor do que na véspera. Foi apenas para
acrescentar algumas ondas e um pouco de emoção ao deslocamento final, quando
retornamos para o rio Maquiné e ao Recanto. Modificamos a ideia inicial,
adaptando-a às condições locais. Foi uma remada curta em extensão, mas rica em
camaradagem e confraternização entre amigos oriundos de dez locais diferentes e
realizada em uma bela região no Sul do Brasil.
As imagens dessa postagem são da publicação online The Paddler, edição de setembro de 2013.
Agradeço ao editor Peter Tranter pela oportunidade de divulgar a canoagem do Sul do Brasil. O texto foi escrito por mim e a versão em inglês foi feita por Clarisse Ricci. As fotografias são de Marcio Pereira e minhas.
Para acessar essa e outras matérias, por favor clique: http://www.joomag.com/magazine/mag/0435828001379390728?feature=archive
3 comments:
Parabéns senhores remadores do Sul! A união faz a força... Parabéns a todos!
Abraços
Valeu, Alvaro, espero que participes nas próximas!!!
Abraço!
Como sempre, Leonardo, tua redação é ótima.
Participei da remada de 2012 e foi magnífica.
Planejo participar em 2014.
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