Monday, October 07, 2013

Remada de Inverno


Remada de Inverno

“Dizem que Deus, quando desenhou o litoral brasileiro, começou no Norte e foi descendo para o Sul. Foi muito generoso, criando lugares paradisíacos com baías, enseadas e ilhas. Quando chegou ao Estado do Rio Grande do Sul, o último, estava cansado e fez uma linha reta...”


Essa é uma anedota contada com regularidade quando analisamos a geografia do Brasil. O litoral de nosso Estado é praticamente uma linha reta, uma única praia com 622 km de extensão com poucas interrupções. Em sua parte Norte a planície litorânea, localizada nas proximidades do paralelo 30 graus Sul, é espremida entre o cordão arenoso do Oceano Atlântico e a serra, que chega a mais de mil metros de altitude. Nessa planície há uma diversidade de mais de quarenta lagoas, abastecidas pela água que vem do alto da serra e muitas delas interligadas por canais, desembocando em um ponto único no oceano.

A ocupação humana ainda concentra-se em cidades nas praias, na orla oceânica, e em algumas cidades da região, de maneira que o entorno das lagoas basicamente constitui-se por propriedades particulares de lazer e fazendas para agricultura e criação de gado.

O clima dessa região Sul do Brasil sofre muita variação, chegando a temperaturas negativas durante as passagens de frentes frias no Inverno e passando dos trinta graus Celsius no calor do Verão.

A canoagem recreativa utilizando caiaques oceânicos está apenas começando no Brasil, com poucos praticantes, algo inexplicável em um país com mais de oito mil quilômetros de litoral e uma infinidade de rios para remar. A oferta de equipamentos reflete essa realidade e ainda é muito limitada.

Nesse contexto é que tivemos a ideia de juntar um grupo de amigos que gostam de remar e procuramos estimular o desenvolvimento dessa atividade tão salutar em contato com a natureza. Se no Inverno as condições são mais desestimulantes para a prática da canoagem, por outro lado os turistas, pescadores, caçadores e lancheiros também ficam em casa, deixando os animais e plantas ficarem mais à vontade e se recuperarem no ambiente natural, estimulando as atividades de contemplação da natureza. Essa é uma das características da Remada de Inverno, que procura estimular a integração entre amigos remadores através de uma atividade cooperativa e colaborativa, sem veículos de apoio – afinal, temos caiaques oceânicos com plena capacidade de carga e autonomia – e sem qualquer caráter competitivo. Não há pagamento de taxas de inscrição nem qualquer vínculo comercial, é essencialmente uma remada de dois dias entre amigos, algo um tanto raro nos eventos envolvendo atividades na natureza.


A Remada de Inverno teve sua primeira edição no ano 2011, a segunda ocorreu em 2012 e a terceira em 2013. Nessas três oportunidades o trajeto essencialmente se manteve entre as cidades de Maquiné e Osório e foi adaptado de acordo com as condições ambientais encontradas. O vento é o principal fator limitante e que orienta as tomadas de decisão sobre o trajeto, já que a região é uma planície exposta onde as lagoas têm baixa profundidade e não sofrem ação de marés. Na primeira edição houve muita chuva nos dias precedentes à remada, de modo que as lagoas estavam cheias e os canais com correnteza e água bem acima do leito normal; o vento oscilou completamente, do quadrante Sul para o quadrante Norte. Na terceira edição esse mesmo vento Sul foi fator decisivo para modificarmos o planejamento inicial.

Remada de Inverno 2013

O planejamento inicial da remada previa a saída para a Lagoa do Peixoto, em Osório, passando pelas lagoas da Pinguela, Palmital, Malvas, Canal do João Pedro e acampamento em uma belíssima praia com árvores frondosas na Lagoa dos Quadros. No segundo dia remaríamos pela Lagoa dos Quadros e rio Maquiné.

Reunimo-nos no ponto de partida na cidade de Osório em um dia frio e muito ventoso por conta da passagem de uma frente fria. A velocidade do vento, medida com anemômetro, chegava a 68 km/h nas rajadas. Teríamos várias áreas bastante expostas no trajeto estabelecido, de maneira que partimos para uma segunda opção que contemplasse uma remada mais curta e abrigada do vento. Deslocamo-nos para o Recanto, em Maquiné, onde poderíamos iniciar pelo rio e remar na margem abrigada da Lagoa dos Quadros.


Mesmo remando em águas bem menos expostas ao vento, um caiaque simples e um duplo foram capotados pelo vento na região onde o rio encontra a lagoa, sem maiores consequências. Remamos para uma praia muito bonita com árvores frondosas e um excepcional local para acampamento, montado sob o sol radiante de um belo dia. Os caiaques ainda carregados foram transportados com a cooperação de todos e lentamente a confusão de equipamentos para remar, equipamentos de cozinha, barracas, sacos de dormir e alimentos foi sendo organizada, em clima alegre e descontraído que é característica da Remada de Inverno. Doze caiaques de catorze remadores foram colocados lado a lado, roupas e equipamentos molhados foram colocados para secar ao vento e sol, em um varal coletivo.

  
Aproveitamos a bela tarde para conversar, trocar ideias sobre caiaques e viagens, alguns descansavam e outros já começavam a se movimentar para coletar galhos secos para uma fogueira. Nas remadas procuramos seguir os princípios de mínimo impacto, levando de volta todo o lixo produzido e inclusive recolhendo o que encontramos pelo caminho. Particularmente nas remadas com acampamento em clima frio a fogueira faz parte como um elemento de agregação, trazendo calor, aconchego e fonte de energia para preparar a janta coletiva. Também faz parte da cultura do homem do campo e por consequência um pouco de nossa própria cultura, mesmo nos dias atuais. O impacto decorrente dessa ação no ambiente ainda é mínimo, considerando que somos poucos praticantes e que são poucas as remadas com essa característica ao longo de um ano. Em muito pouco tempo as marcas da fogueira são completamente apagadas.

O jantar é coletivo, cada pessoa contribui com comida e bebida e o cardápio mais apreciado é churrasco acompanhado por vinho. O céu estrelado e límpido pelo ar frio do Inverno é espetacular, e em 2013 programamos a remada para que ocorresse em noite de lua cheia. A Lua estava na sua menor distância da terra, fenômeno conhecido por Superlua – era possível até ler um livro somente com a luz do luar! Após decisão sobre as atividades para o dia seguinte e divertida confraternização noturna, todos foram para suas barracas descansar.

No dia seguinte o sol foi lentamente colorindo algumas poucas nuvens. O vento forte da véspera desaparecera completamente e a água estava espelhada. Pouco a pouco todos foram saindo de suas barracas e iniciando as atividades para o café da manhã e posteriormente para a desmontagem do acampamento. Mais uma vez a colorida confusão de equipamentos diversos foi sendo organizada e ao final tudo sumiu para dentro dos compartimentos estanques dos caiaques. Nesse dia contamos com a participação de mais um amigo, totabilizando quinze remadores em treze caiaques.


Com água espelhada saímos remando em direção a grandes dunas de areia na margem Leste da Lagoa dos Quadros. Nos pés das dunas desembarcamos, subindo para contemplarmos a bela paisagem litorânea. Enxergávamos a lagoa, agora calma, bem ao longe uma pequena ilha (para onde rumaríamos em seguida) e, recortando o horizonte, a bela serra chegando aos mil metros de altitude.

Retornando aos caiaques, marcamos rumo direto para a ilha rochosa, fazendo uma travessia de nove quilômetros em águas completamente calmas apenas perturbadas por uma leve brisa que transformou a superfície espelhada da água em um tapete líquido. Chegando à ilha, acomodamo-nos sobre as pedras para almoçar.

Durante o almoço o vento retornou, mas em intensidade bem menor do que na véspera. Foi apenas para acrescentar algumas ondas e um pouco de emoção ao deslocamento final, quando retornamos para o rio Maquiné e ao Recanto. Modificamos a ideia inicial, adaptando-a às condições locais. Foi uma remada curta em extensão, mas rica em camaradagem e confraternização entre amigos oriundos de dez locais diferentes e realizada em uma bela região no Sul do Brasil.


As imagens dessa postagem são da publicação online The Paddler, edição de setembro de 2013.

Agradeço ao editor Peter Tranter pela oportunidade de divulgar a canoagem do Sul do Brasil. O texto foi escrito por mim e a versão em inglês foi feita por Clarisse Ricci. As fotografias são de Marcio Pereira e minhas.

Para acessar essa e outras matérias, por favor clique: http://www.joomag.com/magazine/mag/0435828001379390728?feature=archive

3 comments:

Alvaro Walendowsky said...

Parabéns senhores remadores do Sul! A união faz a força... Parabéns a todos!
Abraços

Leonardo Esch said...

Valeu, Alvaro, espero que participes nas próximas!!!
Abraço!

Jair Romagnoli said...

Como sempre, Leonardo, tua redação é ótima.
Participei da remada de 2012 e foi magnífica.
Planejo participar em 2014.